Do austero Dite o magestoso paço, Succosos bagos de roman viçosa, Que a rubra cor da vívida granada Pelas fendas da casca aos olhos mostra. Ascálapho somente a tinha visto
Saborear o delicado pomo;
Ascálapho que filho era de Orphene,
Entre as nymphas do Averno a mais formosa.
Tal da Ethiopia nas adustas côrtes, Entre as esposas dos brutaes monarchas, Por linda se avantaja a que reúne negra côr do ébano lustroso Olhos, aonde o fogo de amor brilha, E dentes que na alvura sobrepujam O polido marfim: assim de Ascálapho No Averno a mãe gentil se avantajava Ás outras nymphas de infernal belleza, E Plutão juncto d'ella, muitas vezes, Das fadigas do throno se esquecia. Até ao vê-la o duro Rhadamanto Se diz que os feros olhos ameigava: Mas era van, travessa, e sem disvelo Tinha educado o filho, que imprudente O segredo fatal revela, quando Ja entre os meigos braços a mãe terna Reconduzia a suspirada filha. Indignou-se do Erebo a sob'rana, E nas aguas do torvo Phlegethonte
Ensopando flexivel tenro hyssopo, Lhe aspergiu a cabeça que disforme E emplumada ficou: a um lado e outro Seis recurvadas pennas se levantam, Ás humanas orelhas parecidas; Quiz fallar, e do resto adunco rompem Somente tristes agoureiros pios, Que frequente com rouca voz repete: Vai os braços mover, e sobre os ares O levantam pintadas longas azas De pardo-escuro e ruivo colorido: Em vez de pés, so dedos guarnecidos Acha de agudas encurvadas unhas: Desde então as nocturnas sombras ama; E do Averno fugindo sobre a terra O vôo dirigiu; onde lhe chamam Mocho, presago de funestos males. Ora habita edificios carcomidos, Ora cavernas de medonhas rochas, Ou cavos troncos de árvores antigas : Sempre nos montes vive, e priguiçoso, O unico signal que testimunha Sua antiga grandeza, é a vaidade Com que em ninhos alheios deposita Os proprios ovos, para ver sem custo Prosperar a voraz infausta prole.
A. P. DE SOUZA CALDAS, as Aves.
NO ESTADO INSOCIAL. DE FAMILIA.-SOCIAL.
E SCIENCIAS. EGYPTO. ROMA.
Da culpa é primogenita a ignorancia, D'ella romperam carregadas sombras, Que os claros horizontes enluctaram Da razão que no berço em luz nascêra : Qual dos corruptos pantanos s'eleva Exhalação mephitica, que abafa
E que embacia o sol, toldando os ares. O rei da creação, tu foste, ó homem ; Ficaste escravo em carcere profundo : A doce habitação do Eden viçoso, Ond'um instante so tiveste o solio, Perdeste para sempre; errante e triste, Tu foste ser habitador dos bosques, Dando o suor e lagrymas á terra,
Que indocil a teu braço entre os abrolhos Te dava apenas misero sustento,
* Relativamente ao poema, de que extrahi os seguintes pedaços, leiam-se as paginas LV LVI d'ésta collecção.
Que disputaste ás feras rebelladas : Fugiu-te qual relampago a ventura, Qual ephemera flor que brota e murcha : Assim vemos nascer na primavera Resplandecente o sol, risonho o dia, Que subito negrume em nuvem densa Aos olhos rouba a luz, e a paz aos ares; Tal o destino do mortal primeiro; Nascendo viu a luz serena e pura; Raiar a viu... esvaecer-se logo.
Houve entre o berço e tumulo um so dia. E tanto pôde em nós seu êrro e crime, Que temos por herança o mal e a morte : Para nós foi destêrro o qu'era patria; A um dia d'ouro seculos de ferro Se viram succeder; fechada noite, Profunda escuridão pousou na terra; De mistura co'as brutas alimarias *, O rei da creação nos bosques vive.
Estado insocial, embora acclame Teus falsos bens, chymerica igualdade, O sabio hypocondriaco eloquente Que a sciencia combate, e a vida emprega Das artes todas no profundo estudo,
Que os homens aborrece, e os homens busca,
* Deu-lhe dous elephantes, e uma alimaria que se chama Ganda.
ALBUQUERQUE, comment. tom. Iv. pag. 98.
Que adora a solidão martyr da glória, E Timão so quer ser sendo Aristippo. Se elle comigo pela marge' immensa Do Amazonas medonho os homens víra Humanos na figura, em tracto feras, Nus sem cultura, barbaros sem patria, Então chamára á liberdade sua
Mais penosa que o carcere e que os ferros, E so menos cruel que o jugo injusto,
Que esses, que elle illustrou, cobardes soffrem*. Pelos vastos sertões sem lares gyram, Qual onça insocial, so pasto buscam, Nos lacerados membros palpitantes De seus mesmos iguaes (e, de assustada, Doce mãe natureza os olhos tapa) A crua fome, e a gula ávida cevam. N'elles é morta a luz do intendimento; Contra a injúria do ar lhe ensina apenas, Qual brada ás feras machinal instincto, A mal vestir enregelados membros De hirsutas pelles de animaes que matam. Gente errante, infeliz, não sente apego A terra em que nasceu; repousa e dorme; Onde a seus olhos lhe fenece o dia,
Lança-se em terra, a languida cabeça
A um tronco, quasi um tronco, encosta e dorme. Se o sol surgindo as palpebras lhe toca, Frouxo, indolente o barbaro desperta.
* O tyrannico e usurpado governo de Bonaparte.
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