-Estou convencido, senhora! Depois, cominhando vagaroso e grave e de terrivel aspecto para João Dagualda disse: -És o mais ignobil miseravel que hei visto; apresenta já a imagem que roubaste! Regelavam de susto o coração de todos as palavras do rei: o corpo do escudeiro interiçou-se, levantaram-se-lhe hirtos os cabellos, e esverdeou-se-lhe completamente o rosto. N'aquelle estado de terror não poude articular um som; apenas apertou com ancia o peito, como se occultasse ali coisa que lhe quizessem tirar. Foi-lhe traidor o gesto. A um aceno do rei dois homens d'armas entraram, travaram d'elle, palparam-no e arrancaram-lhe do seio uma pequena imagem de esmalte e ouro. Tal como dissera a amante de Alvaro, na base, viam-se as armas dos Sotto-Maiores, as tres faxas enxequetadas de ouro e vermelho, e por baixo do escudo em caracteres gothicos a palavra Maria. Perfeita e linda era a imagem. El-rei examinou-a com piedade de christão e amor de artista. Depois entregou-a com respeito á joven, dizendo-lhe: - Agradecei-lhe, que vos salvou e a D. Alvaro. Maria recebeu-a transportada de alegria e terna gratidão. Ajoelhou, levantou-a em adoração, e exclamou compungida: -Oh! Virgem Mãi Santissima, vós lhe remunerastes hoje a sua devoção para comvosco! O processo continuou ainda alguns dias; a perversidade de João Dagualda tornou-se evidentissima, e teve o merecido castigo. D. Alvaro foi reintegrado em todas as suas honras e muito acrescentado n'ellas; e, finalmente, no dia 21 de setembro d'aquelle mesmo anno, desposou Maria, sendo padrinho do casamento el-rei D. João п. Coimbra, Março de 1862. BERNARDINO Pinheiro. UM LEQUE HISTORICO rindou S. M. El-Rei o Sr. D. Fernando a direcção da Revista Contemporanea, com tão preciosa e rica dadiva, que deslembram palavras para traduzir o nosso reconhecimento. Quando a impressão é profunda os labios balbuciam, mas não articulam. Do mesmo modo sentimos vacillar a penna ao formular a phrase. É que o coração só murmura palavras singelas e descophece as louçanias do estylo. E a palavra gratidão, que nos segreda agora, inscreveu-a bem funda. Manifestal-a n'estas paginas, enflorando-a, seria roubar-lhe a pureza. Que viva, pois, como e onde nas cera, viçosa e isolada. Na gravura que illustra este numero não ha só que admirar o trabalho do regio artista, ha tambem que venerar uma reliquia de familia. Reproduzindo-a com o buril prestou S. M. El-Rei o Sr. D. Fernando, homenagem a uma dolorosa recordação. Mas que pungente saudade lhe não avivou! Era uma memoria do coração! Era uma prenda estremecida! Alegrára e apertára duas almas! Havia feito desferir igual sorriso de ventura no presenteador e na presenteada. O que denominamos aqui, leque historico, e que o é, pertencia a S. M. a Rainha D. Maria II, de saudosa lembrança. Foi expressamente pintado e desenhado pelo real artista para lhe ser offerecido. O panno de um lado é enriquecido de graciosas pinturas; e do outro adornado de bellos desenhos á penna. A gravura que abrilhanta o nosso jornal, é copia do primeiro panno. Nota-se, como em todas as obras de S. M. El-rei o Sr. D. Fernando, bastante originalidade na concepção. Os traços são ousados, caprichosos è espontaneos. Inspira-lh'os a imaginação, que é fertil, e que se deleita nas excentricidades. Adora como Hoffman o phantastico, e busca sempre cultival-o nos seus devaneios. Em pequenos quadros agrupa muitas figuras, figuras variadas e distinctas, umas que são puras creações do ideal, outras que são copias exactas da natureza. Do seu lapis ou do seu buril nada passa desappercebido e nada lhe captiva de preferencia a attenção. Parece que lhe auxilia o pensamento tudo que avista da janella do seu quarto! O passarinho que pousou na arvore fronteira, o gato que passeia á beira do telhado, o cavallo que no pateo escarva o chão mordendo o freio, o cão que adormeceu á sombra do castanheiro, o pavão que ostenta as cores vivas da cauda doiradas pelos raios do sol, são logo reproduzidos, confundindo-se nos arabescos de que geralmente guarnece as suas composições. Mas n'aquella mesma confusão e desordem, existe harmonia. A par das exaggerações e extravagancias, ha tambem fina observação e toques extremamente verdadeiros. O que porém, transparece em todas as obras de S. M. El-rei o Sr. D. Fernando, é um sorriso leve e franco, o mesmo sorriso que lhe brinca naturalmente nos labios, e que retrata aquella alma sempre juvenil, e sempre grande, aquella alma de artista que passa descuidosa e serena no mundo, espalhando os beneficios, sentindo e accolhendo os generosos enthusiasmos, extasiando-se na contemplação do bello, e realisando para seu vehemente coração os sublimes prazeres de que tomam seu quinhão os amantes da arte, que no elevado espirito de S. M. tem sido uma irradiação de luz para grandes espiritos descobertos em sua obscuridade. Diremos, agora, que o leque pertencente outr'ora a S. M. a Rainha a Sr. D. Maria 11, foi mandado a França pelo regio artista, para ser esmaltado de oiro e cravejado de pedras preciosas, e foi depois offerecido a S. A. a Sr.a Infanta D. Maria Anna. |