O INFANTE D. JOÃO m dia nos paços dos reis de Portugal havia uma familia numerosa, ligada pelos laços do sangue, que é a attracção da natureza, e ainda mais pelos vinculos da amisade, que é a affinidade do coração. N'um outro dia, a pouco espaço do primeiro, as alegrias domesticas tinham emmudecido e as lagrimas dos principes só achavam consolação na sympathia da angustia, n'esta mystica participação, com que as dores se repartem moralmente entre os que as padecem e os que as pranteiam do intimo do coração. A familia estava dispersa. Um rei, tendo por saudação da sua nova dignidade o luto do' sentimento, que as pragmaticas não podem decretar, e que os povos rarissimo concedem aos seus supremos magistrados. Outro rei, que tivera sempre por mais luzido o sincero cortejo da familia, agora só e triste nos proprios paços aonde lhes faltavam nos filhos os seus intimos, os seus unicos, os seus verdadeiros cortezãos. O resto da familia, uns em terra es tranha; os outros n'esta outra terra, que é sempre natal e propria embora a dor e a saudade se obstinem em chamar-lhe inhospita e estrangeira, a terra do sepulchro. No lastimar as alheias penas, ha não sei que parcialidade affecluosa em favor da infancia e da juventude. Quando ao cabo de sua carreira o velho se repousa no seu tumulo, obreiro encanecido n'este lidar tristissimo da vida, é resignada e serena a dôr, que lhe escreve o epitaphio. É uma existencia, que se volveu completa, uma arvore, que tombou depois de alastrar de fructos o seu torrão; um luctador, que jaz depois de haver exercitado o seu vigor. Mas quando é uma creança, que abre os olhos para os cerrar logo depois aos primeiros clarões de um día estivo e radiante de luz, quando é um adolescente, que vestiu n'um dia a toga viril e no outro a despiu pelo sudario, arbusto, cujas flores apenas desabotoavam, borboleta, cujas azas transparentes e mimosas iam doirando os primeiros reflexos do sol, então a dôr tem o que quer que seja de insoffrida; é então que nos labios ardentes da Niobe antiga, desponta por entre a expressão da amargura o principio de uma blasphemia. Quando é o ancião, que dorme na derradeira estancia, a dôr é symbolisada pelo cypreste, dôr resignada e tranquilla, que aponta para o céo, como o cimo da planta funeraria. Quando são as esperanças de uma existencia, que o destino cortou ainda em flôr, a saudade é como o salgueiro funebre, que se debruça sobre as campas, saudade, que não póde soltar-se da terra, que para ella suspira, que n'ella busca o que perdeu, como as ramas flexuosas da arvore melancholica inclinam a folhagem pendente sobre o tumulo, que assombram e orvalham. Tres principes, todos elles juvenís, todos elles sympathicos, todos elles promettedores de futuro largo e prospero para a patria e para si, são roubados em poucos dias aos jubilos da familia e ás esperanças da terra natal. E porque os chora principalmente o povo ? É porque são grandes, porque são poderosos, porque são principes? Não. É primeiro, porque são bons; porque são mancebos; porque são affaveis e cortezes; porque são portuguezes do melhor quilate; e depois porque são filhos de tal mãe, e netos de tal avô; a primeira rainha constitucional, o primeiro fundador. da liberdade portugueza. O infante D. João foi um d'estes principes infelizes. Nascera a 16 de março de 1842. Educado sob a disciplina domestica da mãe tão varonil e tão perfeita, como era a rainha D. Maria II, aprendeu bem cedo nos maternaes exemplos a pratica das virtudes christãs. Com os mestres, que desde os mais tenros annos lhe foram dados, se exercitou nas letras, tomando d'ellas o que cumpria á educação de um principe, a quem a vocação inclinava para o officio das armas. Sendo apenas de edade de oito annos não cumpridos assentou praça de simples soldado no regimento de infanteria 16 em 4 de janeiro de 1850. Em 19 de maio do anno seguinte foi promovido a alferes do mesmo corpo. Durante quatro annos se conservou n'este posto á espera de que a edade lhe permittisse o effectivo serviço militar. Em 22 de agosto de 1855 foi elevado ao posto de major para o regimento de cavallaria n.° 4 e em 15 de abril de 1858 a tenente coronel para o mesmo regimento. Nomeado coronel em 1860, o joven principe foi investido no commando do regimento de cavallaria n.o 2 lanceiros da rainha. D. Carlos de Mascarenhas promovido a brigadeiro deixára o regimento, em cujas fileiras havia antigamente militado em Portugal e na Hespanha com tamanha distincção e explendor. Era difficil o encargo, que ía pesar sobre os hombros do mancebo, ainda apenas iniciado nos primeiros rudimentos da arte militar. Substituir no commando o velho soldado, a quem a experiencia amestrára em largos annos de campanhas gloriosas, ser aos dezoito annos o verdadeiro chefe de um regimento, valer perante os seus subordinados mais pelo merito e exforço proprio do que pelo prestigio de principe, tornar acceite a auctoridade militar mais pela espontanea obediencia do que pelos respeitos devidos á dynastia, era empresa, em que houveram porventura naufragado outros principes de menos levantados espiritos e de tempera mais rebelde ás durezas e exercicios da vida militar. Era facil alcançar do rei, que o amava com affecto verdadeiramente fraternal, que lhe assignasse a carta regia, facil adornar o canhão do uniforme com os tres galões de coronel, facillimo visitar como que por distracção e desenfado as casernas do regimento, montar n'um cavallo docil e adestrado, apparecer á frente dos lanceiros formados em linha, ou em columna n'um campo de exercicio, percorrer, cavalgando gentilmente, as fileiras do regimento, e fingir n'um simulacro de auctoridade as apparencias do commando. Assim principes na essencia, e militares apenas na elegancia do uniforme e nas continencias da hierarchia, se tinham visto muitos principes, em que a vocação luctava com esta lei cavalleirosa e tradicional, com este preconceito hereditario, que impõe aos que veem de sangue regio como unica e decorosa profissão o glorioso officio das armas. O grande Condé, ainda duque de Enghien, vence aos dezoito annos a famosa batalha de Rocroi, Carlos XII aos vinte derrota |