Compra na veniaga as mais prezadas Mas co' dinheiro o amor d'elle crescendo, As medidas encher; fundo não tendo... (1) Este triste cancro da educação portugueza torna-se mais palpavel com os factos; D. João de Castro abandona os estudos para seguir a carreira das armas; Mem de Sá, irmão de Sá de Miranda, Garcia Froes, irmão do Doutor Antonio Ferreira, Affonso Vaz Caminha, irmão de Pedro de Andrade Caminha, Antonio de Resende, irmão de André Falcão de Resende, Damião de Sousa Falcão, irmão de Christovam Falcão, Heitor da Silveira, irmão de Fernão da Silveira, mostram que nas familias mais nobres se os filhos mais velhos seguiam os estudos litterarios, era forçoso que os outros irmãos se embarcassem para o Oriente para a vida das armas e da mercancia. Foi por este preconceito funesto, que no primeiro quartel do seculo XVI, quando a Renascença ostentava o seu explendor, estavamos em Portugal em um tal estado de atraso scientifico, que o erudito Ayres Barbosa ao regressar á patria, escrevia contristado a André de Resende, analysando o triste quadro das sciencias nas nossas escholas: (2) « Agora vos peço que me digaes se em Lisboa passam as cousas do mesmo modo, e a cubiça ou a leviandade produz eguaes fructos. Se tal succede, resta uma esperança, a da Reforma dos Estudos, em que sua Alteza tanto lida.» Ayres Barbosa escrevia estas pungentes palavras antes de 1537. Em Camões achamos uma queixa ainda mais dura; exaltando o valor dos guerreiros portuguezes, não pôde occultar a repugnancia que as letras lhes causavam, e o estado de obcecação de seus espiritos indifferentes á actividade intellectual do seculo: Não tinha em tanto os feitos gloriosos Vae Cesar sobjugando toda França, Emfim, não houve forte Capitão Por isso, e não por falta de natura, Mas o peor que tudo é, que a ventura Que a muitos lhe dá pouco ou nada d'isso. (1) Estas outavas, em que Camões esculpiu o estado analphabeto dos nossos cavalleiros, não seriam comprehendidas se não fossem evidentes as causas que tornavam para nós a Renascença da Europa uma cousa sem interesse. Abraçámol-a, é verdade, não por um impulso espontaneo, mas porque a realeza decretava a admissão de certas disciplinas litterarias, convidava algum sabio estrangeiro para o magisterio, como Clenardo, ou Erasmo, que D. João III queria attrahir a Portugal, ou por que um ou outro individuo, isoladamente, como Sá de Miranda, imitava certas fórmas cultas então renovadas pela paixão da antiguidade. Tivemos a Renascença, mas pelo seu lado inorganico, exterior e formal, sem a comprehendermos; d'onde resultou ser incompleta essa revolução, que realisou a liberdade politica e civil, mas que matou do modo o mais absoluto a liberdade de consciencia, principio gerador d'essas outras liberdades, não deixando penetrar em Portugal as ideias da Refórma. O que foi para Portugal a Renascença? Na ordem juridica, foi a reproducção da unidade romana da Codificação pelos jurisconsultos eruditos, abolindo o principio da individualidade germanica exarado nas ga (1) Lus., c. v, est. 93, 96, 97, 98. rantias locaes do direito foraleiro. A pretexto de renovar a letra quasi apagada, e as palavras quasi obsoletas dos Foraes, e de egualar as moedas, que eram diversas no pagamento das prestações censiticas, el-rei D. Manoel chamou a si todos esses pequenos Codigos locaes, extinguiu as immunidades n'elles contidas, e deixou ficar os canones que haviam sido o preço da compra d'esses privilegios. Assim realisava-se uma egualdade civil puramente exterior. Esta obra de cavillação, mas necessaria e quasi fatal, quando o Direito Romano era restabelecido e tornado vigente entre todos os povos, foi feita por um erudito e poeta, Fernão de Pina. (1) A substituição do costume pelo direito escripto levou á necessidade de estudar o direito como sciencia. Appareceram os profundos Romanistas do seculo XVI que criaram a archeologia, a critica exegetica, a correlação das sciencias subsidiarias, e as fórmulas geraes e abstractas substituindo o velho systema casuistico e taxativo das leis. Esta revolução tambem foi abraçada em Portugal pelo seu lado exterior e lucrativo, como se vê pela existencia dos nossos Reinícolas; era um modo de vida mais seguro do que a viagem da India, como escreve o jurista André Falcão de Resende: A morte d'este avisa ao irmão segundo, (1) Existem versos seus no Canc. ger., t. III, Um caminho direito, que Ulpiano Dão sentença final, que é mais seguro, E por isso a este filho o pae avaro Estuda mais que Cépola Cautellas, Intenta sempre ajuntar ou ouro ou prata, Ao irmão terceiro o pae faz Canonista, A' pratica mandal-o assenta a Roma, E por manha ou dinheiro, ainda que seja E eis o coitado em Roma, e eis só que entende (1) Obras de André Falcão, p. 296. ་ |