terminou em Luiz de Camões, por essa fatalidade que faz com que o genio se não eternize pelo sangue mas pelas suas obras. A vida dos antepassados do grande epico portuguez explica-nos muitas feições do seu caracter; por isso recolhemos aqui os subsidios historicos que se acham dispersos. É importante, o que de João Vaz de Camões, escreve Manocl de Faria Severim nos Discursos varios politicos: «João Vaz de Camões, filho segundo do primeiro Vasco Pires de Camões, foi vassallo de El-Rei D. Affonso v (titulo muito principal d'aquelle tempo) e serviu o mesmo rei nas guerras de Africa e de Castella. Viveu na Cidade de Coimbra, da qual foi benemerito cidadão, indo por seu procurador ás côrtes d'aquelles calamitosos tempos da creação del-rei D. Affonso; teve o cargo de Corregedor d'aquella Comarca, officio então de grande jurisdição, porque não havia mais de seis no reino, e ordinariamente eram fidalgos muito honrados, e não professavam letras, como inda agora se usa em algumas partes de Hespanha. Tudo isto consta do epitaphio de sua sepultura, que está em uma Capella da crasta da Sé de Coimbra, que o mesmo João Vaz de Camões mandou fazer, onde, á parte do Evangelho se vê um tumulo levantado de marmore, todo lavrado de figuras de meio relevo e nos cantos duas maiores, com escudos das suas armas nas mãos, e em cima do tumulo está a figura do mesmo João Vaz armado ao modo antigo, com uma espada na mão, e aos pés um rafeiro deitado. Esta Capella tem agora o arco quasi tapado de uma parede de tijolo, porque, como faltaram os descendentes do instituidor, ficou devoluta e sem haver quem a ornasse e tivesse cuidado d'ella. » (1) Manoel de Faria Severim escrevia pelo anno de 1624, quando este ramo estava extincto havia já quarenta e quatro annos. D'este importante trecho de Severim, se deduz que João Vaz de Camões seguiu o partido contra o infante D. Pedro, Duque de Coimbra, e por ventura a esta adhesão deveu o cargo de Corregedor da Beira. Andou nas guerras de Africa; sua irma Constança Pires de Camões casou com o seu companheiro de armas Pedro Severim, cavalleiro francez, natural do Bispado de Senlis, o qual veiu a Portugal depois de ter estado em Ceuta com D. João I, e então conhecido na côrte pela alcunha de Baralha. João Vaz de Camões tambem se achou com D. Affonso v na batalha do Toro, á qual concorreu a maior parte dos poetas palacianos do Cancioneiro de Resende; casou com Ignez Gomes da Silva, filha natural de Jorge da Silva, de quem teve um filho, chamado Antão Vaz de Camões. Nasceu este em outra época, quando os serões poeticos do paço ainda continuavam como um arremedo do esplendor antigo; mas já as navegações da India at (1) Discursos Varios, p. 174. Ed. 1805. trahiam com o seu lucro todos os fidalgos, que d'antes eram desinteressados poetas. (1) Na Chronica dos Conegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra, por D. Nicolau de Santa Maria, acha-se escripto Antonio Vaz de Camões, em vez de Antão; isto poderia induzir em um grave erro historico, por que esse teve um filho bastardo, chamado Luiz Gonçalves de Camões, que instituiu o morgado da Torre em Aviz, o qual veiu a pertencer a Simão de Camões, todos do ramo primogenito. Antão Vaz de Camões filho de João Vaz de Camões, casou com Dona Guiomar Vaz da Gama, da familia dos Gamas do Algarve, á qual pertencia o grande navegador portuguez; este casamento explica a vinda de Antão Vaz de Camões para a côrte, e ao mesmo tempo o cargo de Capitão da Armada, que se conferia á principal nobreza. Em 1502, el-rei D. Manoel fez doação a Vasco da Gama, da dizima nova do pescado da Villa de Sines, e de Villa Nova de Mil Fontes, e das sysas de Santiago de Cacem para supprirem a falta das de Sines, e de mais quarenta mil reis das sisas da Villa de S. Thiago, tudo no Algarve: «E bem assy o (1) N'esta época tambem figurava um outro João de Camões, como se vê por uma Carta de El-Rei D. João 11, datada de Carnide, para o Bispo de Evora, em 23 de Julho de 1483, a qual começa: Por João de Camões, vosso Vigario, nos enviastes e vimos o que da vossa parte nos disse em resposta do que vos escrevemos sobre o effeito do entredicto que na cidade de Evora mandastes... » Nob. de D. Luiz Lobo da Silveira, fl. 189. Ms. da Bibl. do Porto. fazemos a elle Vasquo da Gama e por seu respeito isso mesmo queremos e nos praz, que Ayres da Gama e Thereza da Gama sejam de Dom, e se possam em diante chamar de Dom, e assy seus filhos e netos e todos aquelles que d'elles descenderem.» (1) Estes factos mostram a importancia que pelo seu casamento com Dona Guiomar Vaz da Gama, recebera Antão Vaz, que em 1505 foi á India como capitão de Armada; (2) nas Lendas da India de Gaspar Corrêa, cita-se um «Antão Vaz, que commanda uma caravella, era honrado e fidalgo cavalleiro.» (3) Tudo isto leva a crêr que seja este mesmo Antão Vaz aquelle que esteve com Affonso de Albuquerque na tomada de Gôa. Era muito frequente no seculo XVI dar a capitania das náos da India aos fidalgos cavalleiros, não pela sua sciencia nautica mas pela gerarchia do nascimento e dos parentescos; foi isto a causa das perdas incalculaveis dos galeões da India e dos profundos desastres relatados nas relações de naufragio. Gil Vicente, que conheceu todas as miserias da sociedade portugueza, satyrisa este ruinoso privilegio da nobreza, em uma scena de uma Tragicomedia, na qual se vê uma náo em perigo: MARINHEIRO: PILOTO: Tomastes vós hoje a altura (1) Apud Roteiro de Vasco da Gama, p. 178. MARINHEIRO: Ou na Aguada da Boa-Paz, Ou feixe de lenha ou armo de lan; Quem vos houve a pilotagem Esta é uma errada Que mil erros traz comsigo, Dar-se a quem não sabe nada. Por este privilegio da nobreza, accusado por Gil Vicente na presença do rei, é que julgamos ter sido Antão Vaz, aparentado com o Almirante do mar das Indias, aquelle que apparece citado como Capitão, apezar de se lhe não dar o appellido de Camões. Tambem assim se explica a lenda, que dizia ter o seu filho Simão Vaz de Camões militado na India, e lá naufragado, como primeiro o quiz explicar Magnin. Pedro de Mariz, falando de Simão Vaz escrevia (1) Obras de Gil Vicente, t. I, p. 469. |