Já n'este tempo o lucido planeta, Que as horas vai do dia distinguindo, Chegava á desejada e lenta meta, A luz celeste ás gentes encobrindo, E da casa maritima secreta
Lhe estava o deos nocturno a porta abrindo, Quando as infidas gentes se chegaram As náos, que pouco havia que ancoraram.
D'entre elles um, que traz encommendado O mortifero engano, assi dizia: Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino, e salsa via, O Rei, que manda esta ilha, alvoroçado Da vinda tua, tem tanta alegria, Que não deseja mais que agasalhar-te, Ver-te, e do necessario reformar-te.
E, porque está em extremo desejoso De te ver, como cousa nomeada, Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra tu, com toda a armada: E porque do caminho trabalhoso Trarás a gente debil, e cansada, Diz, que na terra podes reformal-a, Que a natureza obriga a desejal-a.
E se buscando vás mercadoria, Que produze o aurifero Levante, Canella, cravo, ardente especiaria, Ou droga salutifera, e prestante: Ou se queres luzente pedraria, O rubi fino, o rigido diamante; D'aqui levarás tudo tão sobejo, Com que faças o fim a teu desejo.
Ao mensageiro o Capitão responde, As palavras do Rei agradecendo; E diz que, porque o Sol no mar se esconde, Não entra para dentro, obedecendo: Porém que, como a luz mostrar por onde Vá sem perigo a frota, não temeudo, Cumprirá sem receio seu mandado; Que a mais por tal senhor está obrigado.
Pergunta-lhe despois, se estão na terra Christãos, como o piloto lhe dizia: O mensageiro astuto, que não erra, Lhe diz, que a mais da gente em Christo cria. D'esta sorte do peito lhe desterra Toda a suspeita, e cauta phantasia; Por onde o Capitão seguramente Se fia da infiel, e falsa gente.
E de alguns, que trazia condemnados Por culpas, e por feitos vergonhosos; Porque podessem ser aventurados Em casos d'esta sorte duvidosos, Manda dous mais sagazes, ensaiados; Porque notem dos Mouros enganosos A cidade, e poder; e porque vejam Os Christãos, que só tanto ver desejam.
E por estes ao Rei presentes manda; Porque a boa vontade, que mostrava, Tenha firme, segura, limpa e branda, A qual bem ao contrario em tudo estava. Já a companhia perfida, e nefanda, Das náos se despedia, e o mar cortava Foram com gestos ledos, e fingidos, Os dous da frota em terra recebidos.
E, despois que ao Rei apresentaram Co'o recado os presentes, que traziam, A cidade correram, e notaram
Muito menos d'aquillo, que queriam; Que os Mouros cautelosos se guardaram De lhe mostrarem tudo o que pediam ; Que onde reina a malicia, está o receio, Que a faz imaginar no peito alheio.
Mas aquelle, que sempre a mocidade Tem no rosto perpetua, e foi nascido De duas mais, que ordia a falsidade, Por ver o navegante destruido; Estava n'uma casa da cidade, Com o rosto humano, e habito fingido, Mostrando-se Christão, e fabricava Um altar sumptuoso, que adorava.
Alli tinha em retrato affigurada Do alto e Santo Espirito a pintura, A candida pombinha debuxada, Sobre a unica phenix Virgem pura: A companhia santa está pintada Dos doze, tão torvados na figura, Como os que, só das linguas, que cahiram, De fogo, varias linguas referiram.
Aqui os dous companheiros conduzidos, Onde com este engano Baccho estava, Põem em terra os giolhos, e os sentidos N'aquelle Deos, que o mundo governava. Os cheiros excellentes produzidos Na Panchaia odorifera queimava O Thyoneo; e assi por derradeiro O falso deos adora o verdadeiro.
Aqui foram de noite agasalhados Com todo o bom e honesto tratamento Os dous Christãos, não vendo que enganados Os tinha o falso, e santo fingimento. Mas assi como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e n'um momento Appareceo no rubido horisonte
Da moça de Titão a roxa fronte:
Tornam da terra os Mouros co'o recado Do Rei, para que entrassem, e comsigo Os dous, que o Capitão tinha mandado, A quem se o Rei mostrou sincero amigo: E sendo o Portuguez certificado
De não haver receio de perigo,
E que gente de Christo em terra havia, Dentro no salso rio entrar queria.
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