E verão mais os olhos que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os duos amantes miseros ficarem Na fervida e implacabil espessura. Alli, despois que as pedras abrandarem Com lagrimas de dor, de magoa pura, Abraçados as almas soltarão
Da formosa e miserrima prisão.
Mais hia por diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando alçado Lhe disse eu: Quem es tu? que esse estupendo Corpo, certo me tem maravilhado.
A boca, e os olhos negros retorcendo, E dando hum espantoso e grande brado, Me respondeo com voz pezada e amara, Como quem da pergunta lhe pezara :
Eu sou aquelle occulto, e grande Cabo, A quem chamais, vós outros, Tormentorio; Que nunca a Ptolemeo, Pomponio, Strabo, Plinio, e quantos passaram, fui notorio : Aqui toda a Africana costa acabo Neste meu nunca visto promontorio, Que para o polo Antarctico se estende, quem vossa ousadia tanto offende.
Fui dos filhos asperrimos da terra, Qual Encelado, Egeo, e o Centimano; Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Contra o que vibra os raios de Vulcano : Não que puzesse serra sobre serra, Mas conquistando as ondas do Oceano, Fui capitão do mar, por onde andava A armada de Neptuno, que eu buscava.
Amores da alta esposa de Peleo Me fizeram tomar tamanha empreza ; Todas as deosas desprezei do ceo,
por amar das aguas a princeza : Hum dia a vi, co'as filhas de Nereo, Sahir nua na praia; e logo preza
A vontade senti, de tal maneira,
Que inda não sinto cousa que mais queira.
Como fosse impossibil alcança-la Pela grandeza fea de meu gesto, Determinei por armas de toma-la, E a Doris este caso manifesto :
De medo a deosa então por mi lhe falla; Mas ella c'hum formoso riso honesto, Respondeo; qual será o amor bastante De nympha que sustente o d'hum gigante?
por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira, Com que com minha honra escuse o dano; Tal resposta me torna a mensageira. Eu que cahir não pude neste engano, (Que he grande dos amantes a cegueira) Encheram-me com grandes abondanças O peito de desejos, e esperanças.
Já nescio, já da guerra desistindo, Huma noite de Doris promettida, Me apparece de longe o gesto lindo Da branca Thetis unica despida : Como doudo corri de longe, abrindo Os braços, para aquella que era vida Deste corpo, e começo os olhos bellos A lhe beijar, as faces, e os cabellos.
Oh que não sei de nojo como o conte! Que crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei c' hum duro monte De aspero mato, e de espessura brava : Estando c'hum penedo fronte a fronte, Que eu polo rosto angelico apertava, Não fiquei homem não, mas mudo e quedo, E junto d' hum penedo outro penedo.
Ó nympha a mais formosa do Oceano, que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? Daqui me parto irado, e quasi insano Da magoa, e da deshonra alli passada, A buscar outro mundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
Eram já neste tempo meus irmãos Vencidos, e em miseria extrema postos ; E, por mais segurar-se os deoses vãos Alguns a varios montes sotopostos : E como contra o ceo não valem mãos, Eu que chorando andava meus desgostos, Comecei a sentir do fado imigo
Por meus atrevimentos o castigo.
Converte-se-me a carne em terra dura, Em penedos os ossos se fizeram ; Estes membros que vès e esta figura, Por estas longas aguas se estenderam : Em fim, minha grandissima estatura Neste remoto cabo converteram
Os deoses, e por mais dobradas magoas, Me anda Thetis cercando destas agoas.
Assi contava, e c'hum medonho choro Subito d'ante os olhos se apartou; Desfez-se a nuvem negra, e c'hum sonoro Bramido, muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao sancto coro Dos Anjos, que tão longe nos guiou, A Deos pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contou futuros.
Já Phlegon, e Pyrois vinham tirando Co'os outros dous o carro radiante, Quando a terra alta se nos foi mostrando, Em que foi convertido o grão gigante. Ao longo desta costa, começando Já de cortar as ondas do Levante, Por ella abaixo hum pouco navegamos, Onde segunda vez terra tomamos.
A gente que esta terra possuïa, Postoque todos Ethiopes eram, Mais humana no trato parecia,
Que os outros, que tão mal nos receberam. Com bailes, e com festas de alegria, Pela praia arenosa a nós vieram;
As mulheres comsigo, e o manso gado, Que apascentavam, gordo e bem criado.
« VorigeDoorgaan » |