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O NOSSO PRIMEIRO PRESIDENTE

Nos annaes da Sociedade Martins Sarmento o anno passado de 1899 tem de ficar marcado com um largo traço negro, que o assignale á memoria dolorida e saudosa de todos nós. Com o pequeno intervallo d'um mez, Francisco Sarmento, para honrar o qual os nossos corações e as nossas vontades se uniram, José Sampaio, o primeiro presidente da nova aggremiação e o leal conselheiro de toda a gente, baixavam ambos á sepultura, como dando-se na morte o ultimo abraço de uma affeição inquebrantavel.

Na historia da sua existencia tão cortada de luctas a que não têm faltado os triumphos, o desapparecimento d'estes dois homens foi a primeira catastrophe que esta Sociedade regista. Não a fará porém baquear. Já isso bem se percebe. A semente que lhe deu origem germinou no coração de todos os vimaranenses, deram-lhe alento as mais puras ambições. Não é por isso estranho nem inesperado que a nova geração sinta em si o mesmo enlevo que guiou os peoneiros da primeira hora. Elles a ampararão e farão triumphar na continuação da sua derrota. Elles saberão extrahir d'essa bella instituição tão generosa e original, os novos fructos que ella ainda póde produzir.

Por emquanto todavia, e para mim sobretudo, o momento é para saudades e recordações. Infelizmente estas paginas não poderão evocar á imaginação do leitor, tanto quanto eu dese

jaria, a nobre feição moral do amigo e do companheiro estremecido na unidade da sua bella vida. Entre muitas razões, porque só tarde conheci José Sampaio e não tenho a quem peça informações intimas sem avivar cruelmente a dôr da sua perda. Registarei apenas os factos publicos, feliz se a interpretação que lhes dér, fôr a verdadeira.

José Bento da Cunha Sampaio nasceu a 5 de fevereiro de 1841 na quinta de Boamense, freguezia de Cabeçudos, do concelho de Famalicão. Foi filho do dr. Bernardino de Sampaio Araujo, da mesma freguezia, e de D. Emilia Ermelinda da Cunha Sampaio, de Guimarães. Seu pae, perseguido por liberal, emigrára em 1828. Voltando a sua casa em 1834, foi eleito deputado em 1836, despachado em 1838 juiz substituto da comarca de Guimarães, onde casou, e depois juiz de direito de Celorico de Basto, onde falleceu em 1842.

Foi assim que, apenas sob a direcção desvelada de sua mãe, fez a sua educação litteraria; em Guimarães na aula do Thomaz Guilherme; em Landim no collegio de João Luiz Corrêa d'Abreu, um emigrado realista, que vivera em Fontainebleau com o Sacra-Familia; nos lyceus de Braga e de Coimbra onde terminou os preparatorios. Em 1858 matriculou-se no 1.o anno da faculdade de direito. No fim do 2.° anno, tendo-se deixado comprometter n'uma d'essas desordens, triviaes em Coimbra, entre novatos e caloiros, foi riscado por dois annos, vindo assim a acabar o seu curso em 1865.

Mal acabou de se formar, na ancia de recuperar o tempo perdido, veio logo para Guimarães (novembro de 1865) praticar com o erudito e afamado jurisconsulto Bento Antonio de Oliveira Cardoso. Em 1867 começou a advogar. A 24 de outubro de 1868 casou com a exc.ma snr. D. Maria José Leal Sampaio, filha dos exc.mos snrs. Antonio Vicente de Carvalho Leal e Sousa e D. Maria Henriqueta Lino Barreto Feio, da quinta do Mosteiro de Landim. No recatado aconchego do seu lar, com sua esposa, seus dois filhos, seu irmão Alberto, inseparavel companheiro de toda a vida, viveu, trabalhou e morreu.

O periodo da formatura de José Sampaio foi dos mais curiosos e originaes da academia. Toda a corrente philosophica,

litteraria e politica do tempo, chegando a Coimbra, encontrou ahi umas duzias de rapazes de talento promptos a assimilal-a. Na apathia geral do paiz, atrazado no saber e falho de critica, gasta e exanime a velha escóla arcadica, esta fermentação de novas ideias, estranhas preoccupações, aspirações novas e atrevidas, fez escandalo. D'ahi ruidosos protestos contra a velha litteratura, contra o velho regimen universitario e suas obsoletas instituições.

Ficaram celebres na tradição essas orgias da mocidade, para as quaes o fumo capitoso das discussões philosophicas e litterarias, a verve e o dito, davam o maior contingente. As ceias, a troça ao futrica e ao caloiro, as longas caminhadas de dia ou de noite, o extraordinario dispendio de talento na inexgotavel alegria, cortada apenas pelos rapidos assomos de hypocondria do futuro poeta da morte, fizeram « essa encantada e quasi phantastica Coimbra », de que nenhum perdeu a memoria e a saudade nos posteriores trabalhos da vida.

Entre esses rapazes, Anthero do Quental tomára breve, pelo encanto que exercia sobre os seus companheiros, uma supremacia natural. Ao grupo dos seus amigos mais intimos pertenceu José Sampaio com seu irmão Alberto, Germano Meirelles, Florido Telles, Frederico Philemon, Felix dos Santos, Santos Valente, os dois Machados de Faria e Maya, Alberto Telles, Anselmo de Andrade, José Falcão, Philomeno da Camara, Lobo de Moura, A. Castello Branco, Theophilo Braga e Manoel Arriaga 1. D'esse grupo sahiu mais tarde no campo da litteratura a celebre questão de Coimbra, no campo da acção a Sociedade do Raio, de que José Sampaio foi um dos membros do Directorio.

Em Coimbra, onde sempre medraram desde 1818 a maçonaria e o carbonarismo, a Sociedade do Raio, parece ter realisado o typo ideal das sociedades secretas. Dentro em pouco contava para cima de trezentos membros, dos quaes poucos conheciam os chefes do movimento. Estes nas iniciações appareciam mascarados e nas reuniões magnas, celebradas ao ar livre nos arredores da cidade ou n'uma casa alugada do proprio reitor, confundiam-se na grande mole, dirigindo-a sem se fazerem suspeitar.

Em seguida faziam a sua primeira revista de forças em homenagem ostensiva ao dr. Bernardo d'Albuquerque, mal

1 Anthero de Quental, In Memoriam, pag. 99.

visto pelo reitor ou pelas classes conservadoras. Aproveitavam a passagem do futuro rei Humberto para proclamarem os seus principios e aspirações. Pensaram em raptar o reitor, o severo e venerando Basilio Alberto, symbolo vivo do absolutismo universitario, e deram por ultimo o seu grande golpe na sessão da distribuição de premios na sala dos capellos, retirando-se de roldão pela porta fóra toda a assistencia, quando o reitor se levantou para ler o seu discurso.

Foi isto a 8 de dezembro de 1862, no principio do 3.o anno de José Sampaio. Anthero de Quental, conseguido o primeiro triumpho, fatigado ou desdenhoso, desinteressou-se e a Sociedade do Raio dissolveu-se. Alguns dos seus amigos, porém, e entre elles José Sampaio, tentaram reorganisal-a sob a fórma maçonica, congregando elementos novos e ligando-a á politica dominante, sob um programma liberal e reformador. D'ahi a fundação da loja Reforma nos principios de 1863, sob os auspicios de Gr.. Or.. da Conf.. Maç.. Port.. de que era Gr.. M... José Estevão. Foi eleito Vener.. José Sampaio 1.

Era este o tempo em que a entrada de Lobo d'Avila no ministerio insufflava uma vida nova no partido historico. As irmãs da caridade tinham sido expulsas, os morgados abolidos, as alfandegas reformadas, feito o contracto do tabaco, instituido o credito predial e a primeira locomotiva silvava até Badajoz. Era emfim o tempo da unha preta, cuja irrequieta e sofrega energia ia demolindo o prestigio e influencia do egregio duque de Loulé. A loja Reforma foi pela unha preta. Parecia ser o futuro e era ao certo alguma coisa. Quando foi da colossal troça de Anthero, raptando a Academia para o Porto, na extravagante questão do perdão d'acto em abril de 1864, a loja Reforma, votando pelo governo, oppôz-se. Em balde, porém, a fascinação de Anthero pôde mais e os proprios membros da loja, por solidariedade academica, acompanharam os seus collegas. Já então se tinha dado a morte de José Estevão e fôra preciso proceder á eleição do Gr.. M.'. A loja Reforma votou pelo Ir.. Viriato (Lobo d'Avila) contra o Ir.. Cincinato (Loulé). Mas venceu o Ir.. Cincinato e d'ahi um scisma. As lojas de Coimbra, não sabendo qual dos Grandes Orientes triumpharia, positivamente desorientadas, dissolveram-se. A loja Reforma nunca mais se reuniu depois de maio de 1864.

1 Apontamentos para a historia contemporanea, por Joaquim Martins de Carvalho, pag. 269.

D'esta rapida excursão pelos dominios da politica partidaria, José Sampaio não parece ter recolhido lisonjeiras impressões. Nunca lhe ouvi uma allusão passageira a estes episodios da sua vida academica, nunca mais se filiou em nenhum partido; porque certamente não é fazer politica servir amigos pessoaes, ou offendido desforçar-se, como lhe havia de acontecer uma ou outra vez. Na depressão geral do espirito publico, que é uma das caracteristicas do nosso tempo, não ha mesmo logar a fazer-se mais nada sem adquirir-se reputação de simples.

Apagados os fogachos da mocidade, em que aliás elle já revelára alguns dos formosos dotes do seu caracter de homem feito, José Sampaio preparou-se desde logo, como vimos, para a labuta util, ininterrupta e tranquilla, na mais nobre das profissões liberaes. Entretanto, essa almejada tranquillidade não havia de encontral-a tão simplesmente. Teve de conquistal-a.

Em Guimarães reinava no foro como senhor absoluto um homem extraordinario. Sampaio, que em Coimbra se defrontára com uma auctoridade obsoletamente severa, mas escudada na lei, ia aprender o que é a auctoridade, que todas as leis posterga, segundo o seu capricho. Este juiz, diz o snr. conde de Margaride que o conheceu bem, «era simplesmente um nevropatha, que á mais ligeira contradicta não trepidava ante o despique com qualquer violencia » 1. Está julgado o juiz que não admitte contradictas, e a sua acção demolidora perfeitamente definida; porque a contradicta é da propria essencia do cargo. A lei admitte recursos, cartas testemunhaveis, tribunaes superiores, representações; elle não admittia nada d'isso quando a sua vaidade estava em jogo. O juiz Secco fez portanto a anarchia na comarca de Guimarães com o seu absolutismo.

Tinha vindo já de Arganil por Tondella e Amarante corrido a repiques e foguetes. Acompanhava-o a fama de onze demandas que trazia com seu proprio irmão. Chegado a Guimarães, tomou-se de ponta com o delegado, que tentou contel-o á força de cartas testemunhaveis, que ia vencendo sempre. Não o conseguindo, nem á setima, pediu a demissão.

1 Revista de Guimarães, numero especial Francisco Martins Sarmento, pag. 30.

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