uma fábrica de fumo; Grain, natural de S. Domingos, bom flautista e optimo cavalleiro. As diversões escasseavam. Em Dezembro de 1817, Denis communica ao pae que, pela segunda vez, foi ao theatro. Representou-se uma peça, cujo thema vinha a ser o sacrificio de Iphigenia, peça imitada dos classicos. Os actores eram desageitados; a enscenação era pauperrima. Agammemnon arrastava uma espada. Achilles defendia-se contra o rei dos reis, com uma espingarda muito primitiva. Quanto ao prudente Ulysses, o estimavel mestiço encarregado de encarna-lo, por não haver resistido á taça offerecida por uma Circe, titubeou durante todo o correr da peça. Nestor, um negro gordo, untado de vermelhão e de pó de arroz, com um bigode á chineza, se apresentou com uma espada pendendo de um cinturão. Chalcas tinha um traje de mago e um chapéo de rabino. Si as princezas da peça houvessem tractado dos vestidos, poderiam ser tidos por bem novos. No quarto e ultimo acto, enquanto o fogo brilhava sobre o altar, Clytemnestra gemia em scena; Agammemnon, resignado calava. O sacrificio de Iphigenia ia cumprir-se. Iphigenia vinha coberta com um véo, rodeada por um bando de rabinos. Os guardas, de bonés na cabeça, cercavam o altar. Era o comêço do sacrificio. Achilles chegava com alguns amigos. Debandava os sacrificadores. Punha a espingarda debaixo do braço de Chalcas e comprimentava o público. A essa tragedia seguia-se uma comedia, com idéas de muito bom toque comico, bem aproveitaveis para um vaudeville. << Mandarei a analyse da comedia ou o original, adverte Denis ao pae. Em geral, continúa elle, a musica de todos os theatros é soffrivel, só as dansas são pessimas. Ha uma, por nome lundú, muito bem desempenhada, posto que indecente. Ir ao theatro é muito dispendioso. A platéa custa mais caro do que na Comedia Franceza. Os preconceitos não consentem que se vá para a platéa. Cumpre alugar um camarote, mesmo estando sozinho, sendo licito receber-se no camarote quem apraz ao dono delle ». Denis tractava de divertir-se ás vezes e de estudar sempre. Era freguez assiduo dos oito mil volumes da finada Bibliotheca Publica da cidade do Salvador, e camarada do respectivo bibliothecario. Curioso ante todos os espectaculos da enorme scena humana, Denis descreve ao pac a quaresma na Bahia. << Não acreditarás, sinão a custo. Aqui se representam mysterios, como no seculo XIV, no recinto das egrejas. Eis quanto presenciei na sexta-feira maior. O padre subiu ao pulpito. Principiou o sermão, discorrendo, como de costume, sobre a Paixão. Exprobrou aos assistentes as suas culpas, exhortando-os a se concentrarem. De subito apontou para uma cortina, a velar o choro, exclamando: «Eis vosso redemptor, miseros mortaes. Prosternac-vos, offerecei-lhe todas as demonstrações de arrependimento. A cortina caïu. Jesus estava crucificado. Ricamente vestida, Magdalena orava aos pés do Martyr. A Virgem, rodeada de anjos, ficava á direita do madeiro. Um soldado romano, todo armado, fazia sentinella. Alguns instantes depois appareciam quatro discipulos de Jesus. Adeantam-se. Querem entrar. São repellidos pelos soldados. Só os deixam passar quando exhibem uma ordem escripta. Prosternam-se, de rosto no sólo, e permanecem em attitude de adoração. Do pulpito o prégador, alternativamente, ordena que de Jesus se tirem a coroa de espinhos, os prégos e os entreguem á Virgem e aos anjos. Em seguida se procede á descida da cruz, mostrando-se os logares ensanguentados do corpo do Nazareno. O povo agita-se, commovidissimo. Ouve-se o ruido de multiplas bofetadas. Dir-se-hia o barulho das palmas no theatro. Quando tudo se acalma, deitam o corpo de Jesus sobre um estrado muito rico. Levanta-se a cortina, e o mysterio finda. Os frades são os ensaiadores e não raro os actores dessas farças sagradas, no meu sentir muito ridiculas. Embora motejem dellas com os extrangeiros, julgam-nas necessarias para ter prestigio juncto ao povo. A existencia delles aqui baralha as minhas idéas. O povo detesta-os e despreza-os, desejando ve-los acabar. Narra-lhes as aventuras, como se fazia no tempo dos fabliaux». Ferdinand Denis não se immobiliza na capital da Bahia. Percorreu o interior da Provincia e da excursão ás margens do Jequitinhonha trouxe recordações inolvidaveis. Estudava paulatinamente o Brasil, do qual se occuparia o resto da vida, até os ultimos avanços da velhice. Em Julho de 1819, Denis perde, pela ausencia, um patricio, um amigo, que regressa á França, como annuncia uma carta de Denis ao pae: «Hippolyto Taunay, filho do celebre pintor, parte para a nossa patria e tem a gentileza de levar-te um masso de cartas. E' um moço amavel e instruido; antigo discipulo de Vauquelin. Hoje se entrega á pintura. Folgarás em conhece-lo » . Denis continuou a ver, ouvir, a tomar notas, a sorprehender os multiplos aspectos da natureza e da sociedade brasileiras, ambas tão complexas. Admira-se do modo práctico, despretencioso e altruista, pelo qual aquella sociedade resolve o intrincado problema das raças. « O negro, escreve Denis a um amigo, o sr. Ducloud, é aqui mais livre e mais considerado do que nas colonias francezas. As classes elevadas acolhem bem os homens de côr. Julgo que o governo favorece esse modo de trata-los. A milicia negra é commandada por pretos. Policia a cidade de parceria com os brancos. Os escravos são menos surrados do que na Martinica e na ilha de França, mas têm alimentação de peior qualidade. Farinha de mandioca, carne sêcca, algumas bananas, algumas espigas de milho, eis tudo quanto deve nutri-los. Não se póde imaginar quanto repugna a carne sêcca, vinda em geral do Rio Grande do Sul, onde se matam os bois para se lhes utilizar apenas o couro. 6980 15 Nunca me habituarei a ver esses bandos de homens, chegados diariamente da costa da Africa, esqualidos, abatidos, com um simples panno de algodão por vestimenta. Não raro os senhores os forçam a cantar pela rua, enquanto seguem rumo do armazem, onde esteiras escangalhadas vão dar descanço aos corpos fatigados pela viagem. Que espectaculo para uma alma européa ! Dizem que a necessidade o excusa; mas, em virtude de que direito esses negros são trazidos á America? Por que não fazem trabalhar os indios, sem escraviza-los? São robustos, dextros, e, com brandura, tudo se obtem delles ». A alma limpida de Denis se inclinava para o torvo problema da escravidão, cujas consequencias ainda se pódem distinguir no curso da historia do Brasil, como na ordem physica a massa da agua amazonica se percebe por muito tempo, longe das costas, na profundeza do oceano. Denis observou, ás vezes com graça, tudo quanto dizia respeito aos pariás escravos, aos seus usos e costumes, tão chegados aos instinctos da humanidade primitiva. Num fragmento de carta escreve, entre sério e risonho : « Em relação ás negras e ás mestiças, espanta a mobilidade incrivel do trazeiro dellas sempre em movimento. A facilidade das creoulas, de faze-lo girar como uma bola, pasma os Europeus. Aliás carecia de um volume inteiro para descrever os bailes selvagens, aos quaes assisto todos os dias. Dir-te-hei que as pessoas dos dous sexos dansam em separado, e talvez a mór parte de taes festas entenda com a religião delles ». Não é uma idéa confusa do animismo fetichista dos negros bahianos, meticulosa e magistralmente estudado pelo professor Nina Rodrigues, de saudosa memoria? << A musica, prosegue Denis, na citada carta, influe muito sobre os negros. São musicos por instincto. Muitos delles inventaram instrumentos de corda e de sõpro analogos aos europeus. Conheço um negro carregador. Ignora a fabula, mas soube fazer uma rabeca de tartaruga com uma corda só, muito fina. Consegue tirar desse instrumento sons graves muito bellos. Toca diversas arias, monotonas e uniformes. Nunca Orpheu conseguiu tanto. Todos os amadores do bairro vem ouvir o negro musico. Toca e canta. Canta palavras doces na lingua natal. Pouco a pouco vai revirando os olhos com expressão exquisita. Enthusiasmo delirante se lhe desenha no rosto. Continúa a cantar; ninguem resiste aos encantos prementes da harmonia. A multidão approxima-se. Imita-lhe os gestos, responde-lhe com palavras entrecortadas. Ouve-se o som de varios instrumentos. A embriaguez chega ao auge. O prazer é inexprimivel, as palavras são insufficientes para pintar o espectaculo. >>> Em 1820, Ferdinand Denis regressa á França, onde se relaciona com Malte Brun, dando-lhe copiosas e sérias informações sobre o Brasil para os conhecidos trabalhos d'aquelle geographo. Publicou em 1825 as Scenas da Natureza sob os Tropicos. Sainte Beuve consagrou-lhe um artigo no Globo e teceu-lhe referencia elogiosa no prefacio da bella edição illustrada de Paulo e Virginia. Datam d'ahi numerosos escriptos de Ferdinand Denis, dedicados a Portugal e ao Brasil, animando-o o suffragio e a sympathia de Sainte Beuve, cousas de immenso peso na epocha. Um artigo dos Lundis era um diploma muito honroso e ambicionado, uma verdadeira consagração. Salvandy, personagem influente da monarchia de Julho, nomeou Denis bibliothecario da Bibliotheca do Ministerio da Instrucção Publica. Em 1840 foi transferido para a Bibliotheca de Sancta Genoveva, no character de conservador. Tornou-se, ao cabo de alguns annos, o chefe do estabelecimento. Sancta Genoveva ainda é um dos logares de estudo mais calmos de Pariz. Imagine-se o que devia ser no tranquillo Pariz de outr'ora. A sala de leitura, no primeiro andar, muito vasta, admitte folgadamente mais de quatrocentos leitores. Julgo ser a maior das |