A Troia Negra (ERROS E LACUNAS DA HISTORIA DE PALMARES) Nas insurreições dos negros escravos, anteriores ás guerras sanctas dos Musulmis, de todo perde-se o cunho das luctas organizadas, enfraquece-se o nexo ao designio de um esforço pela liberdade, não se percebe mais vibrar o sentimento nostalgico da longinqua terra natal. As inspirações patrioticas ou religiosas, que as animaram, se esbatem talvez na insufficiencia dos conhecimentos que dellas chegaram aos nossos dias. E para esse resultado haviam de ter collaborado por egual o desprezo dos senhores pelos escravizados, a ignorancia das leis que regem o desenvolvimento dos povos, a imprevisão da influencia historica que sobre os vencedores exerceram sempre os povos dominados. Difficil assim decidir hoje que nações pretas as promoveram, a que moveis immediatos obedeciam, quaes os intuitos a que se propunham. Todavia, mesmo assim desconhecidas, de algumas se têm feito grandiosas epopéas da raça negra. E a mais sabida, sem dúvida a mais notavel, dentre todas a que melhor escapou ao ingrato olvido dos posteros, fo aquella que impropriamente se chrismou de Republica dos Pal mares. PALMARES - Fixam alguns historiadores a data precisa de 1630 para o inincio dos quilombos constitutivos dos Palmares. Mas antes parece que, de tempos bem remotos, por aquelles sitios se refugiavam dos fazendeiros vizinhos os negros, que se escapavam aos rigores do captiveiro. A lucta com os Hollandezes deu-lhes força e incremento. Já em 1644, ensina Gaspar Barleo, os Hollandezes batiam os quilombos situados então proximo a Porto Calvo e divididos em pequenos e grandes Palmares. A estes, no dizer de Barleo, a faca e ferro destruiu Rodolfo Baro. Pela epocha da restauração de Pernambuco, cêrca de 1650, porém, quarenta negros, todos de Guiné, buscaram de novo o sitio ou ruinas do antigo quilombo e lá o reconstruiram, não já divididos em grandes e pequenos Palmares, mas abrangendo povoados distinctos confederados sob a direcção suprema de um chefe. De modo inexacto se referem alguns historiadores a Palmares como feito unico, a um só e mesmo Estado. No decurso dos seus 67 annos de existencia, por mais de uma vez, parece ter-se rompido alli a continuidade na séde da sua occupação, de contínuo mudada ou transferida, na direcção governista dos seus chefes, que porventura foram diversos Zambis e até, é quasi certo, nas gerações que por alli passaram e que, no pensar de alguns, se contaram por quatro. A solução de continuidade, que o exito das campanhas do Baro e de d. Pedro de Almeida devia ter posto na existencia de Palmares, permitte marcar na sua historia tres periodos distinctos: Palmares hollandez, destruido em 1644 por Bareo; Palmares da restauração pernambucana, destruido pela expedição de d. Pedro de Almeida; Palmares terminal, definitivamente anniquilado em 1697. Como facilmente se poderiam reconstituir os quilombos, destroçados das duas investidas, não é difficil entender, dadas as luctas da restauração de Pernambuco no dominio hollandez, e no periodo posterior dados os escassos recursos da colonia portugueza por um lado, a cópia avultadissima de negros importados pelo tráfico, de outro lado. Mas tal descontinuidade antes se deve admittir quanto á direcção politica e organização do quilombo, do que quanto à sua existencia, pois a esta não chegaram a interromper nem a campanha de d. Pedro de Almeida, nem os successos de Bareo. São de valor e exactidão muito deseguaes as chronicas e noticias, que dessas differentes phases possuimos. A' primeira ou hollandeza se referem extractos de historiadores batavos. Da segunda a minuciosa e circunstanciada relação dos feitos do governador d. Pedro de Almeida contrasta com as noticias incompletas umas, suspeitas de exaggeradas outras, relativas á phase terminal da lucta. O importante manuscripto (1) offerecido em 1859 ao Instituto Historico e Geographico do Rio de Janeiro pelo conselheiro Drummond, de titulo: Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678, destróe muitas das dúvidas que, em 1841, manifestava o desembargador Silva Pontes (2) sobre a séde exacta, a população e outras condições destes quilombos. Do Palmares hollandez é bem resumida a chronica. Barleo (3) epsina que era dividido em grande e pequeno, tendo o primeiro cinco e o segundo seis mil habitantes. Desconvém desta estimativa curioso Diario (4) de uma expedição, commandada pelo capitão João Blaer, traduzido e publicado pelo dr. Alfredo de Carvalho. Não se lhe dá o auctor, que certamente não foi o proprio capitão, obrigado a retroceder logo nos primeiros dias, por gravemente enfermo, e substituido na jornada pelo tenente Jurgens Reijimbach. Mas, qualquer que fosse, quem descreve, o faz de visu. Os expedicionarios saïdos de Salgados a 26 de Fevereiro de 1645, a 18 de Março encontraram um Palmares ha tres annos abandonado por insalubre. Era das proporções do Palmares habitado que, situado mais afastado, só foi alcançado a 21. Constava este Palmares de uma rua, larga de uma braça e longa (1) Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil, 1859. Vol. 22, pag. 303. (2) Dr. Silva Pontes. Programma: Quaes os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos a Historia e Geographia do Brasil? (Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil. Vol. 3, 1841, pag. 149.) (3) Gaspar Barleo, loc. cit. pag. 243. (4) Diario da viagem do Capitão João Blaer aos Palmares em 1645, (da collecção Rreeven en Papieren uit Brasilien, traduzido do hollandez por Alfredo de Carvalho). Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, Vol. X, Março 1902, m. 56, pag. 87, de meia milha, extendida de Oeste a Léste. « As casas eram em número de 220, e no meio dellas erguia-se uma egreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho: havia entre os habitantes toda a sorte de artifices, e o rei os governava com severa justiça, não permittindo feiticeiro entre a sua gente, e quando alguns negros fugiam, mandava-lhes crioulos ao encalço, e uma vez pegados eram mortos, de sorte que entre elles reinava o terror, principalmente nos negros da Angola.» Com quatro portas, Palmares era cercada de estrepes, confinava com um alagadiço por um lado e com árvores derribadas e cruzadas do outro. « Perguntámos aos negros qual o número de sua gente, ao que nos responderam haver 500 homens além das mulheres e crianças; presumimos que uns pelos outros ha mil e quinhentos habitantes, segundo delles ouvimos. Este, conclue o Diario, era o Palmares grande, de que tanto se falla no Brasil » . II. Ao tempo a que se refere o manuscripto do conselheiro Drummond, distribuiam-se não os dous, mas os differentes Palmares por uma extensão de mais de 60 leguas, na vasta zona de palmeiras que, cortada de outras mattas, corre, ao longo da serra das Barrigas, da parte superior do rio de S. Francisco quasi de Norte a Sul, até o sertão do cabo de Sancto Agostinho. Ao Noroeste estava o mucambo de Zambi, 16 leguas do Porto Calvo; ao Norte deste, distancia de cinco leguas, demorava o do Arutirene; a Léste deste, ficavam dous mucambos chamados das Tabocas; destes ao Noroeste e na distancia de 14 leguas o de Dambrubanga, e ao Norte deste a 8 leguas, a cêrca chamada Subupira; desta a 6 leguas ainda para o Norte a cêrca real chamada o Macaco; 5 leguas a Oeste desta, o mucambo do Ozengá; a 9 leguas de Serinhaem para o Noroeste a cêrca do Amaro; 25 leguas das Alagoas ainda para o Noroeste, o Palmares de Antalaqiluxe, ermão de ZombiE entre estes todos, que são os maiores e mais denfensaveis, ha outros de menor conta e de menor gente.» Macaco era então a cidade real, a capital da federação. Tinha para mais de 1.500 casas e era fortificada de um cercado de páo a pique e de fójos e estrepes de ferro. Nella havia uma capella, onde a expedição portugueza encontrou uma imagem do Menino Jesus, outra de S. Braz e outra da Senhora da Conceição. A segunda cidade era Subupira, com mais de 800 casas, dilatando-se pela extensão de quasi uma legua e plantada sõbre o rio Cachingi. É este o sitio provavel, onde demorou o pequeno Palmares dos tempos da occupação hollandeza, pois a elle quadra a descripção de Barleo. Aqui habitava o Zoná, ermão do rei, e era a praça forte em que se aprestavam as guerras. Tambem estava cercada de fójos e estrepes protectores. As outras cidades, governadas pelos cabos e sub-chefes, eram muito differentes de importancia, todas porém mais ou menos fortificadas. Este Estado negro, que no recesso das brenhas assim se constituira e fortalecera, tinha tido começos mais modestos em diminuta reunião de escravos fugidos que, augmentando de número com o tempo, tiveram de raptar as mulheres de que careciam; pois menos aptas a fugir dos engenhos e fazendas do que os homens, estavam ellas em grande falta nos quilombos. O simile com o feito historico do roubo das Sabinas tem offerecido thema aos historiadores enthusiastas dos Palmares, para firmar, para os negros, neste traço accidental de fortuita parecença com os dominadores do mundo antigo, novo titulo de admiração. Mas como era de prever, contestando a affirmação de Rocha Pitta, de que não tivesse sido o rapto das Sabinas nem mais geral, nem mais completo, ensina Denis (5), que « sabido é que os habitantes de Palmares se apoderaram simplesmente, à mão armada, das mulatas e mesmo brancas, que se achavam nas roças e nos arredores». Crescia, todavia, a nação negra que, dando-se a mais e mais á Agricultura, passou a estreitar com os vizinhos, a cujo respeito já se impunham pelo número, relações commerciaes em que, como em Africa, os productos extractivos se permutavam com artigos industriaes, sobretudo armas e munições. (5) Devo declarar que não encontrei na Historia da America Portugueza o juizo que Ferdinand Denis attribue a Rocha Pitta. |