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heroicas dos grandes Capitães, ou os acontecimentos mais famosos das nações, por isso mesmo quão escabrosa não é a execução, e quão poucos têem sido os entes privilegiados a quem o deus da poesia soprou alento divino para embocarem condignamente a tuba heroica. Se nos lembrarmos do intervallo que medeou de Homero a Virgilio 1, e d'este ultimo até o vate predestinado para cantar a heroica navegação dos portuguezes, veremos quão extraordinarios esforços faz a natureza para procrear estes astros da poesia, e quaes deviam ser aquelles, quando mais grandioso assumpto, quando um valor mais alto se levantava para ser cantado. Comtudo a providencia divina, que outr'ora sorria sobre os destinos de Portugal, permittiu que depois de tantos seculos devolvidos, se reproduzisse mais uma vez um d'estes phenomenos na pessoa de Luiz de Camões, engenho raro que a uma alma enthusiastica reuniu estro sublime, e uma intelligencia superior, apurada por uma vastissima e não vulgar erudição.

Por uma coincidencia assás notavel, aquelle mesmo anno (1524) em que baixava á sepultura Vasco da Gama, viu nascer tambem o nosso Poeta, permittindo a fortuna, que foi sempre tão fiel companheira do grande navegador portuguez na vida, bemfadar-lhe a morte com o nascimento do illustre Poeta que, tambem atrevido explorador na poesia, seria o primeiro a resuscitar a epopéa na Europa, para n'ella cantar a sua aventurosa derrota.

O mesmo anno deu tambem nascimento a um poeta (Ronsard)2 que no reino de França devia ser saudado, bem como o nosso Poeta, com o epitheto de Principe dos poetas do seu tempo. Mas se ambos nasceram no mesmo anno foi debaixo de signos mui differentes: a estima e generosidade de quatro Reis successivos, a graciosa dadiva da infeliz e espirituosa rainha de Escocia Maria Stuart, o enthusiasmo que manifestava pelas suas poesias, bem como o consenso geral dos contemporaneos em o exaltarem, deviam não só tornar-lhe a vida agradavel pela saciedade do amor proprio, mas ainda com todos os confortos e gosos d'ella. E o que até é notavel é que no mesmo anno em que o nosso Poeta saía com o seu Poema á luz, se expedia ao poeta francez, a pedido de Carlos IX, a mercê do habito da ordem de Christo, emquanto o nosso Poeta deveu talvez a algum amigo poderoso o poder apresentar o seu poema immortal ao monarcha portuguez.

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Postoque hoje é apurado ter sido o anno de 1524 o que deu o nascimento ao Poeta, nem sempre houve a mesma concordancia de opiniões entre os seus biographos. O Licenceado Manuel Correia, seu commentador e amigo, o faz nascido pelo anno de 1517 pouco mais ou menos. Do pouco porém que elle sabia nos continua a dar prova no decurso do seu commentario, fallando do Poeta depois do seu regresso á patria. «O Poeta via-se em idade de quarenta annos e mais» diz elle: se houvera nascido no anno de 1517 não teria sómente quarenta annos, mas passaria ainda alem dos cincoenta; e um documento por nós descoberto, e que pertence ao anno de 15531, declara positivamente que elle era n'este anno um mancebo.

Manuel de Faria e Sousa, que na primeira vida que escrevêra do Poeta, e que precede o seu commentario aos Lusiadas, seguíra o Licenceado Manuel Correia, collocando o nascimento de Camões no anno de 1517, foi quem mais tarde pôde fixar definitivamente este acontecimento acabando com as incertezas e tirando o motivo ás contestações. Percorrendo em 1643 o cartorio da Casa da India, teve a fortuna de encontrar no registo das pessoas que de Lisboa passaram a servir na India desde o anno de 1550 até o tempo em que escrevia, e em o titulo de homens de armas o assento seguinte: «Luis de Camões filho de Simão Vaz e Anna de Sá, moradores em Lisboa a Mouraria Escudeiro de 25 annos barbiruivo trouxe por fiador a seu pai vai na não dos Burgalezes. Este documento infallivel, esta declaração da idade na presença de seu proprio pae, e em uma estação publica, equivale bem a uma certidão de baptismo em tempo em que não havia registros ecclesiasticos, e é prova irrecusavel para fixarmos no citado anno de 1524 o nascimento de Camões.

Qual fosse a terra que lhe deu o nascimento, esteve tambem por algum tempo indeterminado postoque sem motivo: entre Coimbra, Lisboa, Santarem e Alemquer variavam as opiniões. O soneto c, mal entendido por alguns; o ter sido seu terceiro avô Vasco Pires de Camões, alcaide mór de Alemquer; o nome de uma quinta nas immediações d'esta villa, que ainda no seculo passado conservava o nome de quinta de Camões; e a maneira com que o Poeta se deleita em descrever a mesma villa, como quem n'ella residiu por algum tempo, na estancia LXI do canto i dos seus Lusiadas, foram talvez a causa de a julgarem pa

1 Vide nota 11.a

2 Vide nota 12.

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tria de Camões: a naturalidade ou procedencia da mãe a de Santarem. Faria e Sousa presume ser natural de Lisboa, fundando-se em serem seus paes moradores d'esta cidade, no dialecto proprio da côrte de que usa, e em chamar repetidas vezes ao Tejo patrio. Outros o fizeram natural de Coimbra, fundando-se na residencia de seu pae n'aquella cidade d'onde era oriundo João Vaz de Camões seu bisavô. Domingos Fernandes, na dedicatoria das rimas á Universidade de Coimbra, que publicou no anno de 1607, o assevera. As rasões que se apresentavam dos dois lados poriam a balança em perfeito equilibrio, se Manuel Correia tão positivamente não declarasse ser nascido em Lisboa. O auctor d'este livro diz elle no principio dos seus commentarios — é Luiz de Camões, portuguez de nação, nascido e creado na cidade de Lisboa, de paes nobres e conhecidos. E note-se que Pedro de Mariz, que foi o editor d'estes commentarios e era natural de Coimbra, não emendou o commentador, reivindicando esta honra para a sua patria. Assim podemos dizer, que era oriundo de Coimbra pelos ascendentes, mas nascido na cidade de Lisboa, á qual cabe não menos gloria que a Mantua, por ter dado nascimento ao Virgilio portuguez.

III

Que Luiz de Camões fosse filho de um plebeu ou de um nobre pouco importava para a sua fama, porque ella é toda sua, e de tão alto preço que não precisa valer-se do merecimento alheio: a reputação e gloria de Cicero, Virgilio e Horacio (se é verdade que o primeiro não diminuia o lustre do nascimento para adular o povo romano) chegaram até nós; e apesar do seu obscuro nascimento, os seus nomes brilham entre os mais famosos da antiga Roma. Reputâmos em muito a nobreza do merecimento, e por certo o homem novo que se illustra e ennobrece, lançando os fundamentos d'onde deve florir uma raça illustre a quem deixa o seu nome como honroso estimulo, é digno de consideração igual á que se presta áquelle que a recebe transmittida; mas se isto é assim, tambem não é duvidoso, que aquelle que ao merecimento proprio junta os serviços feitos à patria por uma esclarecida e heroical serie de avós distinctos não o é menos, porventura mais, da estima publica; por isso não julgo ocioso dar aqui noticia da illustre ascendencia do nosso Poeta, no que sigo o caminho dos mais biographos que me precederam.

A familia dos Camaños1 é uma das mais antigas do reino de Galliza, onde desde tempo immemorial tem o seu solar no antigo castello de Camaños, cuja etymologia os amigos do maravilhoso e de novellas fazem derivar de ter uma senhora d'esta casa recorrido, sendo calumniada na sua honra, á prova do passaro que chamam Camão, cujo destino é morrer, quando dentro da casa de seu dono se commette a mais pequena infracção contra as leis da fidelidade conjugal. Restituida a honra da dama, acrescenta a fabula, quiz o marido em memoria d'este caso conservar o nome do passaro; a esta propriedade singular da ave2 allude o Poeta n'aquellas suas redondilhas:

Experimentou-se algum'hora,
Da ave, que chamão Camão,
Que se da casa onde mora,
Vê adultera a senhora,

Morre de pura paixão.

Se fosse possivel dar credito a exagerações genealogicas, desde o v seculo tinham os Camões ou Camaños assento n'aquelle reino. O bispo de Lugo D. Ordonho affirma que Sandia de Camaño acompanhára a D. Pelaio, e se achára com elle em Covadonga, onde fôra um dos principaes cabos que o acclamára rei, e assistira à sua coroação. Porém abandonando estes tempos tão remotos, e avisinhando-nos a uma epocha, em que os documentos se tornam mais claros, e a critica encontra menos dureza em acreditar, diremos que no principio do seculo XI (1002) apparece um Camaño (Camaño Batez testis) confirmando uma escriptura do antigo mosteiro de Cella nova. No começo do seculo seguinte (1129) dois cavalleiros d'este mesmo appellido fundaram o convento de Tojosoutos, e se metteram mongés n'elle, onde esta familia tinha jazigo sumptuoso.

Ruy Garcia de Camaño, que se deve reputar a origem da casa, florecia por este tempo, e se achou no anno 1147 na tomada de Almeria, e foi morto no sitio de Baeza, sendo cercado por um esquadrão de mouros. Foi um dos mais esforçados e poderosos senhores da Galliza; senhor da villa de Rianjo, do estado de Rubianes, Couto de Orocoulo; de dezesete freguezias chamadas as Camoeiras em terra de Salnez e

1 Vide nota 13.a

2 Vide nota 14a

de Barcala, com todas as suas jurisdicções e senhorios. Era casado com D. Ilduara Fernandes de Castro, neta do Infante D. Fernando de Navarra, e cunhada de D. Estephania, filha do Imperador e Rei D. Affonso. D'este foi terceiro neto Fernam Garcia de Camaño, que teve dois filhos. O primeiro, Garcia Fernandes de Camaño, seguiu o partido de D. Henrique, e estando na Corunha, e sendo mandado prender por El-Rei D. Pedro, se fortificou em casa, e se defendeu valorosamente: n'elle continuou em Hespanha a varonia d'esta casa, de que são hoje representantes os Senhores de Rubianes, Marquezes de Villa Garcia e Viscondes de Barantes. O segundo filho, Vasco Fernandes ou Pires de Camões, seguiu o partido do Infante D. Pedro, e se passou a Portugal no anno de 1370 com o desgraçado Conde D. Andeiro e outros fidalgos gallegos, e deu principio n'este reino á familia dos Camões; outros dizem que uma desavença com outro fidalgo poderoso, que custou a vida ao adversario, deu logar á sua expatriação.

Pela qualidade das doações que lhe fez o soberano portuguez se conhece bem quanto lhe foi aceito, e qual era a valia do novo vassallo, pois no anno de 1373 lhe fez El-Rei D. Fernando mercê das villas do Sardoal, Punhete, Marvão, Villa nova de Anços, e das terras e herdades em Extremoz, Aviz e Evora que foram da Infante D. Beatriz, e juntamente lhe deu a quinta do Judeu em Santarem, e mais as Alcaidarias de Portalegre e Alemquer, e os senhorios do concelho de Gestaço, e do castello de Alcanede, mercês todas que se acham registadas nos livros da Chancellaria de El-Rei D. Fernando; e sua mulher a Rainha D. Leonor Telles o deu por aio a seu sobrinho D. Affonso, Conde de Barcellos.

Seguiu primeiro o partido de El-Rei D. Fernando contra D. Henrique II, em o que fez grandes serviços á corôa de Portugal, e por morte de D. Fernando abraçou o partido de sua viuva a Rainha D. Leonor e sua filha D. Beatriz, e ficando prisioneiro na celebre batalha de Aljubarrota, perdeu o senhorio de todas as terras, alcaidarias e castellos, conservando apenas, por benignidade real, as herdades que tinha em Evora, Extremoz e Aviz, e outros bens que possuia em Alemquer e Lisboa, dos quaes seus descendentes fizeram morgados de rendimento, principalmente em Evora e Aviz, onde possuia muitas fazendas, a que chamaram as Camociras em memoria de seu primeiro possuidor.

Mas não foi só pela nobreza de sangue e animo valoroso, que se distinguiu o ascendente do nosso Poeta, mas pela cultura das letras, e estro poetico de que era dotado, pois conforme uma carta do Marquez

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