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Cosi parlar convensi a vostro engegno
A vostra facultade, e piede et mano,
Atribuirce a Dio, et altro intende

E Santa Chieza con aspetto humano
Gabriel e Michael vi representa.

O Tasso, não só explicou a allegoria do seu poema em um discurso preliminar, mas tratando do mesmo vocabulo, fado, se expressa ao mesmo modo do nosso Poeta:

Demonio li chiama angelica favella,

Ma il pazzo mondo lui fortuna apella.

Parece-me pois sufficientemente provado que o poema dos Lusiadas saíu em vida do auctor como elle o concebêra, e somente depois da sua morte se tentou fazer-lhe algumas alterações; mas note-se que estas se tentaram subrepticiamente, dizendo-se até que a edição onde se faziam algumas ridiculas amputações e emendas 1, ia conforme a primeira (1572). Já não podemos dizer o mesmo das suas poesias lyricas, que temos toda a certeza que soffreram cortes; da comedia de Filodemo se cortaram, entre outras cousas, umas redondilhas, e na egloga vii, intitulada dos Faunos, temos a lamentar a falta das estancias em que descrevia Diana no banho.

É pois pouco exacta e infundada a asserção, ao menos pelo lado honorifico, do pouco apreço que da pessoa de Luiz de Camões fizeram seus contemporaneos: elles o coroaram com o titulo de Principe dos Poetas, e affirma mais Faria e Sousa, que quando elle apparecia na rua, todos paravam até que desapparecia. Na côrte não foi menos estimado. No soneto LXIV da centuria 1, feito ao grande D. Luiz de Athaide, por occasião dos festejos e distincções que El-Rei D. Sebastião lhe fez à sua volta de Goa, no qual encarece como objecto de maior fama o vencer no reino amigo as ingratidões e inveja, do que no Oriente os reis inimigos; e no soneto LIX, recitado sobre as cinzas d'El-Rei D. João III, por occasião da sua trasladação para Belem, successos que ambos tiveram logar n'aquelle mesmo anno, temos prova de que elle acompanhava a côrte, onde era bem aceito.

Logoque saiu o seu poema, ou talvez antes, isto é, a 28 de Julho

1 Vide nota 65.a

de 1572, o galardoava o joven Rei com a pensão de 15,5000 réis 1 pelos seus serviços militares, e pelo engenho, sufficiencia e habilidade que mostrou no livro das cousas da India; e parece que tão grande era a estimação que se fazia do Poeta, que a pensão é dada com a clausula de residencia na côrte. Taxam os biographos do Poeta de pouco generosa esta mercê do Soberano, e Manuel de Faria e Sousa affirma que costumava elle dizer, que pediria a El-Rei que mandasse dar mil e quinhentos açoutes, a quem tão mal a pagava. Este escriptor, aliás estimavel, quando apaixonado é tão propenso a exagerar, que assim como com elle não acreditâmos que Francisco Rodrigues Lobo fosse plagiario, Bernardes um versificador pouco limado, e Francisco de Sá de Miranda um engenho trivial, nos não achamos dispostos a acredita-lo n'esta occasião, quando das apostillas da tença se collige o contrario.

XIX

Mesquinho foi sem duvida o premio, para quem tão grande brado deu aos illustres feitos da gente portugueza; porém se attendermos á pouca idade do Rei, e que só de guerras a cabeça trazia preoccupada, de algum modo desculparemos um mancebo, que não soube agraciar mais generosamente um engenho tão singular, e não nos admiraremos tanto que o alaúde poetico fosse mal ouvido entre o estrepitoso som dos instrumentos de guerra.

Não busquemos pois na injustiça dos homens a origem da pouca fortuna do Poéta, mas sim, forçoso é dize-lo, porque elle proprio o confessa, em alguns erros, e em circumstancias accidentaes que tão poderosamente attenuaram no fim da sua vida a gloria portugueza. Se é verdade, como temos visto, que elle deveu os seus primeiros infortunios a uns amores do Paço; se nos lembrarmos das barreiras que o decoro tinha posto ás galantarias d'aquellas portas a dentro; poderemos alvez imputar a falta de protecção que encontrou junto da pessoa de um Soberano, que aos proprios estrangeiros attrahiu com mercês, a esse passo não criminoso, antes filho de um coração sensivel e da verdura dos annos. Se teve perseguições, durante o tempo que esteve na India, de um Miguel Rodrigues Coutinho, e dos dois Barretos, encontrou protecção em um D. Constantino de Bragança, em um Conde de Redondo,

1 Documentos F, G e I.

D. Antão de Noronha, e mais amigos alem d'aquelles que o trouxeram em sua companhia á patria. Exerceu o officio de Provedor dos defuntos na China, onde parece ter grangeado alguma fortuna; e que culpa tiveram os homens de que as ondas do mar, com implacavel sanha e voracidade, lh'a absorvessem? agradeçamos-lhe, ainda benignas, terem-lhe poupado a vida e com ella, a nós, o seu Poema immortal. Elle mesmo confessa por sua propria bôca não lhe faltar o necessario na idade florente, na sua resposta a Ruy Dias da Camara, o qual havendo-lhe pedido que traduzisse os Psalmos penitenciaes, e queixando-se este fidalgo que passado tempo e instancias suas o não tivesse feito, tendo elle escripto tantos e tão singulares poemas, respondeu: «Senhor, quando eu os fazia achava-me na idade florente, favorecido das damas, e tinha o necessario, e agora me falta tudo, que ahi está o meu Antonio, pedindo-me quatro maravedis para carvão, e não tenho para lh'os dar.»

Este favor das damas, uma independencia de caracter quasi sempre inherente a um espirito superior, certa liberdade de dizer pouco aceita a cortezãos, alguns tiros satyricos contra os homens em poder, foram sem duvida as causas da pouca fortuna do Poeta. Camões, como o Tasso, tinha em si um germen de infelicidade irresistivel; esse genio sublime que despedia, como a aguia, arrojados vôos ao céu, não podia rastejar como um verme desprezivel debaixo dos pés da dependencia. Não admira alem d'isto que o auctor das Rimas, pouco divulgadas nas mãos de um ou outro amigo, tendo que manter o passo a um Så de Miranda, em grande voga, a um Bernardes, todo cortezão, e outros, fosse pouco apreciado até o seu regresso á patria. Foi então que o Poeta nacional foi inteiramente conhecido pelo seu Poema, que dos estranhos deveu, entre outros elogios, o do seu emulo em gloria e desventura o celebre Tasso, e entre os nacionaes, alem da exaltada veneração que desde logo The tributaram, o parco premio pecuniario da tença de que lhe fez mercê o Soberano, primicias talvez de outros maiores. Digo primicias, porque se a fortuna caprichosa tivesse de outra maneira favorecido o joven monarcha, o nosso Poeta se destinava a cantar a sua expedição, e bem natural é que este Principe, em cujo peito, por fatalidade nossa, ardia tão exagerado incentivo de gloria, não deixaria morrer á mingua o seu Homero; porém a sorte, sempre inconstante, arrojou na mesma sepultura a nação, o Poeta e o Monarcha que o devia galardoar.

Assevera Faria e Sousa que os pezares do Poeta augmentaram com a escolha que, com exclusão d'elle, se fez de Diogo Bernardes para cantar em verso heroico o assumpto da expedição do Rei, e isto por lem

brança e instigações do Cardeal. Pede comtudo a justiça, apesar do pouco que prezâmos a memoria d'este Rei pela cobardia e egoismo com que preparou a nossa desgraça, que demos pouco credito á asserção do commentador. Como se podia offerecer competidor a Camões, depois da publicação dos seus Lusiadas? Alem d'isto, quebrantado pelas enfermidades, encostado a umas muletas, como no-lo representa o mesmo Faria e Sousa, como podia elle seguir os seus companheiros de 'armas a uma empreza, onde tão necessario era que o vigor do corpo se juntasse ao ardimento do coração?

XX

Se não foi permittido ao Poeta seguir o Monarcha portuguez ha sua mallograda empreza, e succumbir em companhia de tantos valorosos soldados, persuadimo-nos, e com boa rasão para o acreditar, que elle o acompanhou na sua primeira expedição á Africa, e que a espada do soldado veterano da Asia se desenferrujou ainda em uma pequena escaramuça. Uma interrupção que se nota n'este anno no pagamento da tença, por não estar assentada no Livro da Fazenda1, não podendo attribuir-se a descuido da parte de quem tinha tão vivo despertador como a miseria, denota ausencia. A elegia xIx, dirigida ao joven D. Pedro da Silva, que n'este tempo governava Tanger, na qual refere uma entrada em terra dos mouros, e a tomada de um celebre capitão por nome Alafe, parece ser escripta sobre o local; pois narrando este feito de armas do joven guerreiro portuguez, e referindo-se ao mouro aprisionado, diz:

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Acresce a estas, emquanto a nós, quasi provas, o genio e propensão do Poeta, que achando-se com soffrivel disposição de saude, lhe não soffreria o animo ser simples expectador de uma expedição militar que era tanto do agrado do Rei. Mais tarde só lhe restava o desejo de o acompanhar; o braço forte e robusto, que 'outr'ora tinha empunhado a espada tão pesada contra os inimigos da sua patria, apenas podia me

1 Documento H.

near a penna ligeira para cantar as, ainda mal, tão falsamente preconisadas victorias, com que o valoroso Principe lisonjeava a sua imaginação guerreira a tal ponto, que ía o sermão de graças encommendado e a coroa com que devia ser coroado Imperador em Marrocos.

Que o Poeta se destinava a cantar esta empreza, na dedicatoria do seu poema dos Lusiadas, o declara, e mais que tudo se manifesta no privilegio que se lhe concedeu para a publicação do seu livro, em o qual se faz menção dos novos cantos que acrescentasse, e n'isto parece que quiz seguir a Virgilio, que a Eneida, dizem, quiz estender a vinte e quatro. E que outros podiam ser estes em um poema completo como o do nosso Poeta, senão talvez o acrescentamento do III, com as victorias africanas do joven Rei D. Sebastião? Camões muito bem podia delinear e compor expressamente um Poema sobre o ousado feito que esperava cantar, porém acertadamente julgou que mais ia para a fama do Rei que pretendia exaltar, dar-lhe entrada no grandioso templo da gloria lusitana, que bem assim podemos chamar á maravilhosa fabrica da sua epopea.

Esta foi talvez a primeira idéa do Poeta, porém vemos que depois variou o pensamento; pois apenas El-Rei D. Sebastião saiu o porto de Lisboa, esperançado o Poeta que voltaria com a victoria, começou a traçar e escrever em um poema sobre o assumpto, e tinha já muitas estancias escriptas, quando veiu a noticia da sua perda. Foi tal o sentimento que experimentou com a nova d'aquelle successo, que logo queimou o que tinha escripto d'este poema, o qual, segundo a opinião de Bernardo Rodrigues, seu amigo e tambem poeta, que o tinha visto, e a Faria e Sousa o affirmou, excedia os Lusiadas, e andava o Poeta como assombrado; e acrescentava o mesmo, e Manuel Ribeiro e Alvaro de Mesquita seus amigos, que perdeu logo o furor poetico e nunca mais tomára a penna para escrever versos.

Com quanto pezar temos a lamentar, e por tantos motivos, que o Poeta não tivesse occasião de celebrar esta expedição militar! Se ainda hoje nos agradam tanto os capitulos do delicado e elegante monge Fr. Luiz de Sousa, em os quaes conta os combates da Africa, e nos parece que o frade quer largar o habito para pegar ainda na espada, com que gosto leriamos um poema, escripto por um poeta tão superior e conhecedor das cousas da Africa! Que bellezas não devia apresentar este excellente poema! Que interesse no bem trabalhado das descripções locaes! no

1 Vide nota 66.a

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