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O dia em que eu nasci morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,

Não torne mais ao mundo, e se tornar
Eclipse, nesse passo, o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se escureça,

Mostre o mundo sinaes de se acabar,
Nação-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãi ao proprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas de ignorantes,

As lagrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruio.
Oh gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao mundo a vida.
Mais desgraçada que jamais se vio!

Que soffrimentos eram necessarios para arrancar de um homem da tempera do nosso Poeta, avezado aos trabalhos mais asperos do corpo, e a desgostos os mais profundos, expressões de tanta amargura!

Mas n'esta hora solemne e fatal, na qual cáem todas as decepções, e em que as flores da vida, se alguma houve, se tornam em pungentes abrolhos, em que ainda a saudade do nada que deixamos nos affecta, comquanto se antolhe já a eternidade, se a morte nos tomou de subito ainda no meio da carreira, e a apathica insensibilidade da velhice nos não annuviou os olhos para não vermos o escabroso do transito, nos não embotou o paladar para não saborearmos o amargor das ultimas fezes da vida que se escoa, uma consideração importante e consoladora deve acudir para allivio ao christão moribundo, e é esta, que se a Providencia Divina permitte na sua alta sabedoria que a mais bella alma seja agitada no mundo pelos maiores revezes da fortuna, é porque lhe reserva mais vantajoso quinhão na gloria dos justos.

Era o Poeta mortal, e por isso sujeito ás fraquezas humanas; e assim, se na maior força da amargura da vida lhe resvalava dos labios alguma imprecação irreflectida, logo se acoutava á religião, e mais de uma vez nos Livros Santos, no livro de Job, n'este exemplar da paciencia na adversidade, procurava remedio e resignação para o soffrimento. Agora porém mais suave balsamo buscava, como conforto, nos Sacramentos que a Igreja, como mãe carinhosa, administra aos seus filhos; é isto não só conjectura assentada em bom fundamento, nos principios religiosos do Poeta, mas ainda o assevera um escriptor da sua vida.

Mas era já tempo que aquelle corpo, mutilado pela espada do inimigo, alquebrado pelas ondas do mar, requeimado pelos ardores do sol da Africa e da Asia, opprimido pelas molestias que trazem os trabalhos do corpo e do espirito, repousasse; recebeu-o a terra em seu seio benefico, onde se acabam as fadigas d'esta vida transitoria e começa outra de paz e infinita. Os exercitos de Castella iam invadir Portugal, já estavam proximos á nossa fronteira, quando o Poeta lutava entre a vida e a morte; uma catastrophe como esta, maior de quantas tinha experimentado em vida, não podia deixar de levar a ultima ferida mortal áquelle coração portuguez, cheio de amor por aquella sua outr'ora ditosa patria. Succumbiu cumprindo-se-lhe o desejo de morrer n'ella e com ella, aos cincoenta e seis annos de idade, no dia 10 de Junho de 15804. Este anno, nefasto nos annaes portuguezes pela perda da independencia nacional, e que marca aquelle em que teve fim tão atormentada existencia, foi fatal para o genio; ao mesmo tempo, que agonisava Camões, e se lhe não cabia na terra a brilhante ovação do Capitolio, ia receber no céu este excellente Poeta e melhor cidadão mais gloriosa corôa, jazia encerrado em um hospital de doidos o Tasso, arrastava pesados grilhões em uma masmorra da Africa Miguel Cervantes, e exercia o vil officio de magarefe Shakspeare. Este anno nos arrebatou tambem o Cicero portuguez, o Bispo Jeronymo Osorio, e o grande D. Luiz de Athaide, esse ultimo gigante da gloria portugueza, que poucos momentos antes acabava de arcar com todo o poder da Asia, colligado contra os nossos dominios. Feliz o heroe da India que preferiu talvez, como o nosso Poeta, estalar de dor, ao assistir ás exequias da sua patria!

Pouco tempo depois, quando Filippe II deu a sua entrada em Lisboa, procurando pelo Cantor dos Lusiadas, e dizendo-se-lhe que era fallecido, se mostrou pezaroso; porém temos toda a rasão para acreditar, pelos precedentes do Poeta, que elle preferiria a sua pobreza honrada a receber o oiro envilecido das mãos do tyranno da patria. Comtudo exige a imparcialidade que se diga que conservou 65000 réis dos 455000 réis que elle recebia 2, a sua mãe Anna de Sá, attendendo aos serviços do filho, feitos na India e no reino, e não lhe ficar outro herdeiro, e ser ella muito pobre e velha, inteirando-lhe depois a pensão dos 155000 réis 3 no anno de 1584, epocha em que ainda era viva.

1 Documento K.

2 Documento J.

3 Documento L.

"

XXIV

Foi Luiz de Camões, diz Manuel Severim de Faria, de mediana estatura, cheio de rosto, algum tanto carregado de fronte, nariz comprido, levantado no meio e grosso na ponta; cabello loiro quasi açafroado, gentil e engraçado na apparencia quando era moço e antes de perder o olho direito. O mais antigo retrato, ou o primeiro, que possuimos do nosso auctor, é o que foi publicado no anno de 1624 no elogio que The fez Manuel Severim, e havia sido mandado gravar por seu sobrinho Gaspar Severim de Faria dois annos antes. N'esta gravura subscripta por A. Paulus, é representado o Poeta em meio corpo e em vestuario militar, pousando uma mão sobre os Lusiadas, e com a outra pegando na penna, e no alto do quadro se vêem as armas da familia, lendo-se embaixo esta subscripção:

MUSIS ET POSTERITATI S.

LUDOVICO DE CAMÕES, EQUITI LUSITANO,

POETÆ CELEBERRIMO, MUSARUM DELITIIS GRATIARUM ALUMNO,
HUMANARUM LITTERARUM ENCYCLOPEDICO,

NECNON ARMATÆ PALADIS EGREGIO SECTATORI.

IN QUO FELICISSIMUM INGENIUM ET ADVERSA FORTUNA DECERTARUNT. GASPAR SEVERIM DE FARIA VERAM EFFIGIEM ENEA TABULA INCISAM, UT QUI ORBEM JAM FAMA OCCUPAVIT PRESENTIA EXORNAT.

D. D. Q.

Manuel de Faria e Sousa juntou tambem ao commentario dos seus Lusiadas um retrato representando um busto, e na base as armas, e o emblema das palmas e da espada, que julgo foi escolhido por João Franco Barreto. Nos commentarios autographos aos Lusiadas do mesmo Faria e Sousa, que se conservam na real bibliotheca das Necessidades, vimos um retrato em uma portada que serve de frontespicio ao livro, feito por mão de Faria e Sousa -es hecho de mano de Faria e Sousa e com a declaração de ter sido tirado aos quarenta annos do Poeta; o mesmo, commentador preparava em Roma uma estatua para ser depositada junto à sua sepultura, porém não pôde traze-la concluida.

Com melhor buril e pouca differença no vestuario se vê outro retrato seu na Apologia com que saiu João Soares de Brito, no anno de 1641. O retrato está em uma elliptica que se encaixa em um parallelogrammo, e junto aos angulos superiores d'este parallelogrammo, pela parte interna se vêem duas figuras embocando cada uma a sua trombeta, e nos angulos inferiores de cada lado uma espada pendente, e em torno da elliptica esta inscripção:

MANSURA PER OEVUM FATORUM COMITIS.

Na traducção castelhana de Tapia de 1580, na folha do titulo, parece estar o Poeta representado em uma vinheta com a lança em punho, e na acção de querer montar a cavallo.

O seu retrato vemos alem d'isto que ornava as salas e bibliothecas dos curiosos, e a um d'estes encontrámos uns versos em castelhano em um cancioneiro do seculo XVII, que suppomos feitos por D. João de Almeida:

Soi quien los hechos del felice Gama
Engrandeci con tan divino canto,
Que en el soberbio templo de la fama,
Los dos quedamos por eterno espanto,
Alcançando entre aquelles que la rama
Del lauro cinen mi alta pluma tanto,
Que de quanto el mundo estima e nombra
Yo solo soy la luz, y ellos la sombra.

Na edição das obras de Camões, por Manuel Lopes Ferreira (1720), apparece um novo retrato em corpo inteiro, que me parece tirado de algum retrato antigo, e vê-se o Poeta representado na acção de compor, sentado junto a uma banca em uma sala, cujas paredes estão ornadas com dois quadros de batalhas. Conheço tambem um pequeno busto executado em madeira, com olhos azues, cabello ruivo, que serviu de gastão a uma bengala muito antiga que tinha em volta um anel de prata, onde se lia o anno do nascimento e fallecimento do Poeta. Eu tenho tambem um retrato a oleo que me parece antigo, que apresenta certa expressão de melancholia no rosto e alguma differença dos outros retratos. Possuia um em ponto pequeno a sua amante D. Catharina de Athaide, que costumava trazer no seio, o que deu logar ao Poeta, vendo o seu transumpto collocado em sitio tão privilegiado, e logar de tanta gloria,

romper n'estes lindos versos, em que manifesta o desejo de dar sentidos e vida áquella copia; versos que, postoque correm nas suas poesias, por desconhecidos, principalmente dos estrangeiros, peço licença ao leitor para aqui os trasladar:

Retrato, vós não sois meu
Retrataram-vos mui mal,
Que a sereis meu natural
Foreis mofino como eu.

GLOSA

Inda que em vós a arte vença
O que o natural tem dado,
Não fostes bem retratado,

Que ha em vos mais differença
Que no vivo do pintado:

Se o lugar se considera

Do alto estado que vos deu
A sorte, que eu mais quisera,
Se he que eu sou quem d'antes era,
Retrato, vós não sois meu.

Vós na minha gloria posto,
Eu na vossa sepultura,

Vós com bens, eu com desgosto
Pareceis-vos ao meu rosto,
E não já á minha ventura.
E pois n'ella e vós erraram
O que em mim he principal,
Muito em ambos se enganaram:
Se por mim vos retrataram
Retrataram-vos mui mal.

Mas se esse rosto fingido
Quisereis representar,
Ouvera por bom partido
Dar-lhe a alma do sentido
Para a gloria do logar.

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