tempestade destroçou no Tejo. Hoje (1854) que eu escrevo estas regras, os mares se acham coalhados de esquadras, movem-se os exercitos, multiplicam-se os instrumentos da morte, e a atmosphera se acha toldada e pejada com os futuros destinos do mundo, que vão decidir-se junto aos muros da antiga Bysancio. Calcará aos pés a thiara do Pontifice o czar vencedor e resurgirá uma sociedade nova, ou abroquelada a Europa de uma invasão do Norte, pelo broquel do novo czar do Occidente, será sopeada e enfreada temporariamente a anarchia para mais tarde, como corsel indomado, calcar aos pés a ordem e a propriedade e repetirem-se as scenas de 1790 e 1848? Trará a excessiva civilisação, sceptica, sem fé nem esperança e materialista, concebida no ventre a barbaridade futura? É este, digo, o terrivel problema que talvez aponta na aurora nebulosa do futuro, legado pelos desvarios, desunião e falsa politica de nossos antepassados, e pelos crimes e indifferentismo dos Reis e povos em os seus mutuos e verdadeiros interesses. XXVII Mas voltando ao nosso Poeta que deixámos fallecido: quaes foram as paredes que foram confidentes das suas ultimas maguas, que ouviram os seus ultimos suspiros, que presencearam scenas de tanta dor e amargura, e escutaram, com voz sumida entre o estertor da morte, aquellas suas palavras patrioticas -morro com a patria é o que não podemos perfeitamente dizer. Alguns affirmam que acabou os seus dias no hospital; Manuel Correia nada diz a este respeito, antes pelo contrario, commentando a estancia XXIII do canto x, na qual o nosso Poeta allude a Duarte Pacheco que morreu no hospital, fazendo menção da triste sorte d'aquelle valoroso Capitão que foi expirar em uma casa d'estas de caridade, diz que o mesmo tem succedido a outros muitos excellentes varões de que os lidos nas historias sabem: parece que seria esta a occasião de emparelhar aqui na similhança do infortunio o do nosso Poeta. O que dá mais força a esta tradição da morte no hospital é a citação á margem do antigo exemplar dos Lusiadas. «Que cosa mas lastimosa que ver un tan grande ingenio mal logrado! Yo lo bi morir en un hospital en Lisboa sin tener una savana con que cobrir-se despues de aver triunfado en la India Oriental, de aver navegado 5:500 leguas por mar: que aviso tan grande para los que de noche y dia se cançan estudiando sin provecho como la arana en urdir tellas para cazar mos cas!» Assim se expressa fr. José Indio, monge carmelita do convento de Guadalaxara, que escreveu esta noticia n'aquelle exemplar; comtudo objecção é tambem de alguma força não ser o logar da sua sepultura. no cemiterio proprio d'aquella casa, e ter-se pedido a mortalha á casa do Conde de Vimioso. Na verdade bem apropriada coincidencia, que da mesma casa d'onde saía a espada que queria arremedar os brios da do Condestavel, saisse tambem a mortalha para o Poeta! No hospital real de S. José procurámos com todo o cuidado apurar a verdade do facto nos registos d'aquella casa; porém não o podemos conseguir, porque os assentamentos da entrada dos enfermos não chegam á epocha em que o Poeta falleceu. É possivel que o Poeta morresse em uma d'estas casas de asylo, que a caridade portugueza tinha semeado n'esta nossa terra; alguma albergaria, mesmo talvez a de Sant'Anna, que n'outro tempo estava situada no mesmo sitio onde está hoje o convento d'esta invocação, que n'elle se edificou por cessão que os confrades fizeram do terreno no anno de 1564, por comprazer com a Rainha D. Catharina. Não obstante a cessão continuaram comtudo os irmãos da confraria a fazer a festa do orago e seus enterramentos, no mesmo convento; talvez a devoção natural da mãe pela Santa do seu nome, faria com que o Poeta de tenros annos entrasse na confraria, e se explicaria como veiu a enterrar a este convento, que n'aquelle tempo servia tambem de parochia. Comtudo no tempo de Faria e Sousa era a opinião mais seguida que fallecêra em uma pobre casa na rua de Sant'Anna. «Alguns dizen que el P. murio en un Hospital. Pero los mas dizen que el murio en una pobre casita en que vivia cerca del Convento de Monjas Franciscas y Vocacion de Santa Anna.» O padre Francisco de Santo Agostinho de Macedo, em uma biographia manuscripta, affirma que morrêra em uma casa humilde na dita rua junto ao arco de Sant'Anna, e casa da Encarnação e pegada com a ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz. Acrescenta Faria e Sousa, que esta casa da sua residencia nunca mais föra habitada; é notavel que ainda hoje pesa o mesmo mau destino sobre esta habitação. Se alguma vez o leitor subir esta ingreme calçada, e fatigado parar no meio d'ella, observe à sua mão esquerda uma casa em ruinas sem habitador, que faz frente para a rua e para o becco de S. Luiz, e tem o numero de policia de 52 a 541, e saiba que debaixo d'aquelles telhados porventura curtiu a mais cruel e acerba desven 1 Vide nota 79.a 1 tura o Cantor immortal da gloria dos portuguezes. Exhalasse porém o ultimo suspiro em uma casa de caridade, ou na pobrissima pousada onde residia, o certo é que lhe faltava no fim da vida tudo quanto para ella era necessario, e em tanto apuro de miseria vivia que escrevendo-lhe Ruy Dias da Camara 1 para que lhe traduzisse os Psalmos Penitenciaes que lhe havia encommendado, lhe deu a resposta que já mencionamos n'esta biographia, em que lhe expunha o desalento e quebramento de espirito, a que o reduziam tão graves e dolorosas angustias. Morto em tanta miseria, levaram o seu cadaver á igreja das freiras Franciscanas da invocação de Sant'Anna, que então servia de freguezia, e estava proximo da sua casa, e ahi foi dado à sepultura pobre e plebeiamente, diz Pedro de Mariz, logo ao entrar da porta principal ao lado esquerdo. Não nos devemos admirar da frieza com que o trataram então os seus compatriotas, se nos lembrarmos que morreu em uma epocha em que todas as lagrimas eram poucas para chorar as desgraças da patria; não obstante, apenas o tempo deu o allivio possivel, ou para melhor dizer a resignação necessaria para o soffrimento da calamidade publica, dezeseis annos depois o trasladou para outra mais honrada sepultura D. Gonçalo Coutinho, cavalheiro illustre da Casa de Marialva e grande amigo do Poeta, e sobre a sua campa lhe mandou gravar este singelo, mas expressivo epitaphio: É AQUI JAZ LUIS DE CAMÕES DOS POETAS DO SEO TEMPO. MORREO NO ANNO DE 1579. ESTA CAMPA LHE MANDOU POER D. GONÇALO COUTINHO NA QUAL SE NÃO ENTERRARÁ NINGUEM. = para advertir que Pedro de Mariz e Faria e Sousa, e seguindo-os outros muitos, acrescentaram á inscripção as palavras viveu pobre e miseravelmente que ali se não encontravam, pois a inscripção, tal qual a apresentamos, foi trasladada da propria sepultura do Poeta pelo Chronista da Ordem, que por esta occasião rebate 3 o editor das obras do Poeta publicadas no anno de 1772, que novamente repete este mesmo erro; admira-me como Faria e Sousa, que escreveu com tanta in 1 Vide nota 80.a 2 Vide nola 81.a 3 Vide nota 82.a vestigação sobre o Poeta, se não deu ao trabalho de visitar a sepultura, n'aquelle tempo ainda não vedada ao publico, para nos dar mais minuciosas informações relativas ao local onde repousam as cinzas do Poeta. Mais abaixo da primeira inscripção, com licença de D. Gonçalo Coutinho, the mandou pôr outra mais diffusa e hyperbolica, escripta em ver'sos latinos, Martim Gonçalves da Camara, Escrivão da Puridade d'ElRei D. Sebastião e seu valido, aquelle mesmo que dizem que em vida do Poeta lhe fôra adverso; foi está composta pelo padre Matheus Cardoso, da Companhia de Jesus, e dizia assim: Naso Elegis, Flaccus lyricis, Epigramate Marcus, India mirata est, quando aurea carmina lucrum Sic bene de patria meruit dum fulminat ense: Est sibi, par nemo, nemo secundus erit. O Chronista franciscano já citado faz menção de outra memoria que ali mandou collocar o contemporaneo do Poeta, Miguel Leitão de Andrade, o auctor das Miscellaneas, a qual ainda se conservava quando o Chronista escrevia, porém não a descréve. Em um manuscripto do anno de 1638 encontrámos a sua descripção, isto é, no livro de Diogo de Mouro de Sousa 1. Consistia em uma tarja de azulejo com uma cruz no meio, collocada na parede junto à sepultura, e no pé da dita cruz esta inscripção: 1 Vide nota 83,a O grão Camões aqui jaz E nas illargas do proprio pé da cruz, estes dois epitaphios por esta e de cada lado dá cruz ficava uma figura, uma d'ellas com um ramo verde em uma mão, e a outra sustentava um livro com um tinteiro e penna. Os dois epitaphios que estavam sobre a sua sepultura se achavam em partes gastos, no seculo passado, como testifica um escriptor d'aquella epocha que descreve este mosteiro. Muitos outros epitaphios, tanto na lingua latina como em outras linguas, foram escriptos em louvor do Poeta por differentes enthusiastas, sem o pensamento comtudo de serem postos na sepultura. A acquisição da perpetuidade da sepultura obtida por compra aos padroeiros da igreja, que eram os sapateiros da Padaria, feita por D. Gonçalo Coutinho, os testemunhos de veneração ali collocados por elle e pelos outros dois fidalgos, e que n'aquelle local se conservavam ainda pelo terramoto de 1755, a mesma clausura em que ficavam os despojos mortaes do Poeta confiados ás virgens do Senhor, sempre cuidadosas na boa administração interna dos templos confiados á sua guarda, davam logar a esperar que estes pequenos padrões do reconhecimento nacional se conservassem intactos; porém desgraçadamente não aconteceu assim, e antes estivessem expostos ao publico, pois teriam sem duvida mais facilmente despertado a idéa de lhe levantar condigna sepultura, conservando-se incolumes tão preciosos restos mortaes. As religiosas porém, mais occupadas das cousas celestes do que das terrenas, apagaram todos os vestigios apparentes por obras a que procederam no côro inferior onde estes se achavam. Para sobradar o côro, as lages foram arrancadas, porém felizmente não mexeram nas covas, como depois se reconheceu; e os azulejos que estavam na parede foram igualmente arrancados, e esta coberta com retabulos de altares que acompanham as paredes de um lado e outro do côro. Por zelosa proposta de um dos nossos mais celebres poetas, o Sr. Antonio Feliciano de Castilho, feita perante a sociedade que se installou em Lisboa no anno de 1835 com a denominação dos Amigos das letras, se resolveu a exploração da sepultura do Poeta. Nomeou-se uma com-' missão, e obtida a competente licença por parte de S. Em.a o Sr. Patriarcha e a do Governo, a Commissão começou as suas explorações |