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tava o desengano, e para o que buscava me servisse o conselho no qual estou resoluto de hir este anno a Coimbra restituirme aos ares em que me criei parte do tempo que perdido tenho, entretanto que eu mais de perto não posso corar estas oppinioens com que ás duvidas respondo se lembre V. M. que he obrigado a honrallas como minhas e defendellas como suas. >>

Seria longo para aqui, e por certo tarefa mui superior ás nossas forças, o descrever o movimento litterario da Academia portugueza, no tempo em que foi cursada pelo nosso Poeta: parece que penna mui douta1, pela analyse do seu Poema, se encarregou já de demonstrar os variados conhecimentos em os differentes ramos das sciencias que n'ella devia ter bebido, quem concebeu e poz por obra um poema tão maravilhoso; e de certo, se não tivesse outro padrão de gloria, bastava o ter creado tão distincto alumno, e nós não podemos dar do seu esplendor mais valioso testemunho que o do proprio Poeta:

Quanto pode de Athenas desejar-se
Tudo o soberbo Apollo aqui reserva,
Aqui as capellas dá tecidas d'ouro

Do Bacaro e do sempre verde louro.

Sem entrar comtudo no exame do movimento scientifico e no systema litterario que regia a Universidade n'aquelle periodo da sua existencia, para se mostrar qual era o profundo estudo que se fazia das linguas mortas, tocaremos em um estylo que achâmos consignado nos estatutos do collegio de Santa Cruz (1536) onde vem descriptos os exames dos que se graduavam nas differentes faculdades, isto é, que pelos ditos estatutos era não só prohibido, mas tinha-se como opprobrio a qualquer escolar communicar-se n'outra lingua que não fosse a grega ou latina, pelo menos dentro da Universidade. Fazemos menção d'este costume academico, porque estamos persuadidos de que concorreu não pouco para o solido conhecimento das sciencias, para as quaes estas duas linguas eram a chave, e para o aperfeiçoamento da lingua poetica, que o Poeta formou e enriqueceu de novos vocabulos e elegantes locuções, e fixou de todo. Em uma descripção contemporanea (1550) do mosteiro de Santa Cruz, se faz menção não só d'este uso, mas de outros costumes escolasticos; e porque descreve com cores assás vivas

1 Vide nota 18."

a vida academica d'aquella epocha, nos parece de algum interesse extractar a parte em que allude aos ditos usos. «Sobre este terreiro (diz a descripção) em altura de quatro degrãos está hum tavoleiro ladrilhado de pedras quadradas, e cercado de grades de ferro, sobre o qual estão fundadas as bazes do soberbo portal de magestade, torres e igreja d'este mosteiro. Em este tavoleiro ha grande concurso de estudantes que continuamente conferem entre si, huns em gramatica, outros em rethorica, outros em logica e philosophia, outros em santa theologia, outros em medicina da vida e saude humana reparadora; e a todos he oprobrio fallar, salvo em a lingoa latina ou grega. Estes estudantes sahem como enxame de abelhas de dous polidos e concertados collegios, o primeiro se diz de Santo Agostinho, e o segundo de S. João Baptista, são as aulas ou geraes em elles ladrilhados e forrados e providos de cathedras mui arteficiosas.» Cheio de todo o viço e florescencia da mocidade, de toda a superioridade do talento, se nos figura estar vendo o nosso Poeta no meio d'este enxame de estudantes discutindo, e admirando a todos os seus condiscipulos e mestres pela vastidão de seus profundos conhecimentos.

Nenhum pastor cantando me vencia,
A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira em qualquer manha
Sempre a palma entre todos alcançava,

exclama elle em uma das suas composições, aprazendo-se no gabo de si mesmo, e com toda a consciencia do proprio merecimento.

No primeiro Capitulo, que se celebrou em Santa Cruz a 3 de Maio de 4537, saiu eleito primeiro geral d'aquella congregação D. Bento de Camões, tio do Poeta e irmão de seu pae, e por carta passada a 15 de Dezembro do mesmo anno, primeiro cancelario da Universidade, cargo o mais principal d'aquella Academia. Debaixo dos auspicios, tutella e, discrição de tão proximo parente, cursou o Poeta os seus estudos, de sorte que durante esse tempo, nem lhe faltou direcção na sua carreira litteraria, nem protecção valiosa. Foi por esta occasião que escreveu, segundo elle diz, á sombra de um freixo de um valle ameno a sua elegia (inedita) a Sexta feira Maior, a qual pelo soneto dedicatorio que a acompanha se conhece ser dedicada ao tio e mentor:

1 Vide nota 19.

A ti Senhor a quem as sacras Musas
Nutrem e cibão de porção Divina,
Não as da fonte Delia Caballina
Que são Medeas, Circes e Medusas,

Mas aquellas em cujo peito infusas
As estão, que as leis da Graça ensinão,
Benignas no amor e na doutrina
E não soberbas cegas e confusas,

Este pequeno fruto produsido
Do meo saber e fraco entendimento
Huma vontade grande te offerece.

Se for de ti notado de atrevido
Daqui peço perdão do atrevimento
O qual esta vontade te offerece.

A elegia a que precede este soneto, um dos primeiros ensaios da musa juvenil do Poeta, se caracterisa, bem como o soneto xxi, por um lado por aquella vaidade de erudição, tão conhecida em um mancebo que sáe dos estudos; mas é ao mesmo tempo apreciavel por este mesmo defeito, para devidamente avaliarmos o progresso intellectual do Poeta. Por elle vemos o porfiado estudo que fazia dos auctores gregos e latinos, que por assim dizer lhe fervem na cabeça, como em um vaso o confuso tumulto e fermentação de particulas, que mais tarde hão de formar o mais suave e generoso licor. É invocado Apollo; as Musas Daphne, Doris, Panopêa, Thetis, Galathea dão tambem o seu contingente; o Pelio, Emmo, Ossa, Pindo e Atlante, são outra vez amontoados, não para escalar de novo o céu, mas para chorar a mais triste das scenas, passada em um pequeno monte, grande porém porque n'elle se arvorou o signal da nossa Redempção; os Thracios, a Grecia, Colchos, a Scythia, Sparta, os Phrygios incultos, são tambem incommodados; Ptolomeu e Strabo foram tirados da estante pulverulenta; e não houve coisa que esquecesse da antiga mythologia.

No meio comtudo d'esta abundancia extravagante e affectação escolastica, examine-se com cuidado este aliás diffuso poema, e n'elle encontraremos já os caracteristicos precursores de um grande Poeta. Note-se a tendencia que tinha de inventar vozes novas, e a felicidade na appro

priação dos epithetos; examine-se principalmente o final d'esta precoce tentativa poetica depois que o Poeta gastou todo o fogo da erudição, eficou elle só, e encontraremos verdadeira poesia, pensamentos felizes e as mais bellas imagens. Quem póde recusar-se a admirar como rasgos de mestre, alguns pensamentos e imagens felicissimas: -O lyrio branco decomposto derrubado pelo ferro homicida a branca rosa trespassada do frio o cisne que na ribeira umbrosa enternece brando a selva circumstante com voz melodiosa — os anjos que como enxame de abelhas leves e ligeiros pressurosos trabalham por aligeirar os martyrios do Salvador? Mas o que é mais notavel, é a maneira com que termina, a exclamação de enthusiasmo por Homero e Virgilio, com quem em tão verdes annos já deseja hombrear:

Tomara ser Virgilio ou ser Homero
Somente no saber que foi divino,

Que ser o que elles forão não no quero.

Camões leu os dois poetas certamente divinos, e exclamou: -Eu tambem sou poeta-; e desde esse tempo traçou talvez as primeiras linhas d'aquelle Poema immortal que, mais tarde, o devia emparelhar com os dois eximios Epicos da Grecia e do Lacio.

A famosa expedição de Vasco da Gama, postoque conservada em memorias, algumas dos proprios navegadores, não tinha ainda entrado para o corpo das nossas chronicas, nem Castanheda, Osorio ou Barros tinham ainda publicado as suas historias ao tempo que o nosso Poeta frequentava a Universidade; comtudo parece, que já João de Barros propunha á mocidade o abandonar a brandura efeminada das poesias eroticas, apresentando-lhe, como programma, o resuscitar a poesia heroica para cantar os altos feitos dos portuguezes. No anno 1533 (tinha então Camões nove annos), no discurso panegyrico de D. João III, recitado perante o mesmo monarcha pelo historiador da India, fallando da poesial heroica, se expressa por esta maneira: «Com este fundamento ás mesas dos Principes e grandes Senhores se cantavão antigamente em metro os feitos notaveis dos grandes homens donde primeiro naceo a poesia heroica, e segundo eu tenho ouvido ainda neste tempo os Turcos em suas cantigas louvão os feitos d'armas e cavallarias de seos Capitaens, o que se fosse usado em Hespanha e toda a Europa, se me eu não en

1 Vide nota 20.a

gano mais proveito de tal musica naceria, do que nace de saudosas cantigas e trovas namoradas.» Aceitou poucos annos depois o convite o nosso joven Poeta; mas pôde João de Barros ver o seu desejo preenchido? Poucos mais dias de vida lhe eram sufficientes; ao mesmo tempo que chegava a Lisboa o Poeta, fallecia o historiador da Asia portugueza.

Se o primeiro pensamento dos Lusiadas não foi este convite, o que não pode absolutamente asseverar-se, não padece duvida comtudo que o Poeta foi principalmente influido pela leitura das Decadas da Asia, na narrativa do seu Poema (oxalá as não seguira tanto á risca!), bem como na urdidura poetica pela de Homero, e mais que tudo pela de Virgilio, pois não era do numero d'aquelles de quem escreve o nosso Garção, que só conhecem o portico de Athenas em caixas opticas pintado.

Mas se das linguas mortas tinha um cabal conhecimento, não cultivára com menos desvelo as vivas, isto é, a franceza, ingleza, castelhana e italiana, e mesmo a provençal, como affirma lord Strangford 1, dizendo-se conhecedor, e as suas respectivas litteraturas. O grande numero de por-tuguezes graduados pela Universidade de Paris 2, e de francezes que já residia entre nós, e outros que concorreram depois a chamamento d'El-Rei D. João III, em cujo numero se contava Nicolau Grouchy, que verteu para francez a Castro do nosso Ferreira, devia tornar muito vulgar o conhecimento da lingua franceza em Portugal; e a analogia que se nota em certo trecho dos Lusiadas com um logar dá Franciada 3 parece denotar que ao Poeta não foi desconhecido o poema de Ronsard.

A residencia tambem de alguns escocezes e inglezes entre nós; a grande reputação de Buchanan; o elogio ouvido talvez da bôca d'este, do seu poeta Chaucer, poderia talvez incitar o nosso Poeta ao desejo de ler na lingua propria o patriarcha dos poetas inglezes, para o conhecimento da qual tinha aberto as portas a celebre Paula Vicente, com a sua grammatica ingleza. A similhança de pensamento (se não foi um d'estes encontros do genio) de um logar das poesias do poeta inglez, com a ficção da ilha de Venus, faz de alguma maneira acreditar que ao Poeta não foi igualmente desconhecido o Poema inglez. Porém nem uma, nem outra d'estas linguas offerecia n'aquella epocha modelos tanto a seguir na poesia, como a castelhana, e mui especialmente a italiana.

1 Vide nota 21 a

2 Vide nota 22." 3 Vide nota 23.

4 Vide nota 24.a

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