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Desta arte me figura a fantezia
A vida com que morro, desterrado
Do bem que em outro tempo possuia.

Aqui me representa esta lembrança

Quão pouca culpa tenho, e me intristece

Ver sem rasão a pena que me alcança.

A aspereza com que representa um sitio aliás tão ameno e encantador, e a inveja com que se dirige ás barcas que vão nadando rio abaixo, mostra quão violentado aqui residia; e que aguardava com impaciencia um praso, determinado ou indeterminado, para pôr termo a este degredo, consta igualmente d'esta composição:

Ate que venha aquelle alegre dia

Que eu vá onde vós ides, livre, e ledo;
Mas tanto tempo quem o passaria!
Não pode tanto bem chegar tão cedo:
Porque primeiro a vida acabará,

Que se acabe tão aspero degredo.

Chegou com effeito esse dia desejado com tanta ancia pelo nosso Poeta, e pôde elle dirigir-se novamente a Lisboa, e gosar da vista e convivencia da sua amante; mas ou porque recaísse na mesma culpa, ou por outra que nos é occulta, incorreu na pena de um novo degredo para sitio mais afastado, em uma das praças d'Africa que estavam debaixo do dominio da corôa portugueza, e onde a mocidade ía baptisar as suas espadas, antes de se passar ás longinquas conquistas do Oriente.

Ja quieto me achava com a tristeza,

E alli não me faltava hum brando engano,
Que tirasse desejos da fraqueza.

Mas vendo-me enganado, estar ufano,
Deu á roda a fortuna, e deu comigo

Onde de novo choro o novo dano.

Esta epocha da vida do Poeta, se deve calcular entre os annos de 1546 a 1549. Da elegia I, consta ter sido Ceuta o logar do seu exilio, e pela canção XII, vemos que o navio ou armada em que ía, tocára no porto

de Villa-nova de Portimão ou Lagos, porque n'ella descreve a ribeira de Boina. Partiu provavelmente o Poeta no anno de 1546 para Ceuta; e como o Mediterraneo andava então infestado de corsarios, e por isso os nossos navios cruzavam n'aquelles mares, talvez em algum recontro d'estes perdesse o olho direito: pelo menos essa é a tradição. Da carta I consta indubitavelmente ter-lhe acontecido este desastre, antes da sua partida para a India, pois fallando de um certo Manuel Serrão, diz que sicut et nos manqueja de um olho, sinistro este que lhe afeou o rosto, e deu logar aos motejos das damas, que lhe chamavam cara sem olhos. Da canção xi se deduz ter sido este ferimento resultado de combate, que pela descripção que o Poeta faz, se vê que fôra sanguinolento, e onde elle encetou a sua carreira militar.

Fez me deixar o patrio ninho amado
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara,
Agora experimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse e tocasse o acerbo fruto seu:

E neste escudo meu

A pintura veram do infesto fogo.

Temos á vista uma carta sua (inedita) escripta de Ceuta, a um cavalheiro seu amigo, depois de chegar áquella praça, que mostra a ambição e desejo em que estava de experimentar a sua espada, e que reputava em pouca conta as escaramuças que então se tinham com os mouros. N'esta mesma carta lhe dá novas da terra, e se a pintura é exacta, não eram muito lisonjeiras. Queixa-se do pouco valor de alguns dos seus camaradas; da sua maledicencia, e da pouca fortuna e recompensa que tinham aquelles que mais se arriscavam; do pouco respeito que os mouros tinham ás nossas armas, e de outros desconcertos. Este abandono em que começavam a estar algumas praças de Africa, combina alguma cousa com a correspondencia official d'aquella epocha.. N'esta mesma carta se desculpa com a pessoa a quem é dirigida, que era confidente dos seus amores, de lhe não ter escripto, porque ainda não tinha tido logar de tornar sobre si. N'ella lhe pinta o estado apaixonado em que ficava, e lhe pede a sua protecção sobre a qual funda

menta toda a sua ventura, e lhe inveja a dita de estar em Lisboa, onde então residia a sua amante.

O mesmo digo eu tambem,

Porque o mal que eu la passava
Com ver a quem m'o causava
Se me convertia em bem;
E por isso perdoai me,
Se eu brado noute e dia

Venid ora e llevad me.

Como poderá porém pôr em effeito o seu desejo, se uma ordem tyrannica o separa d'ella? se o praso do degredo não será terminado

Senão vindo aquelle dia

Que ha de ser fim de dous annos.

Forçoso é comtudo, emquanto não chega esse dia tão desejado, soffrer com toda a resignação o seu tormento

Pues que suffrir e callar

Conviene a mi pensamiento.

Em uma segunda carta falla de uma refrega com os mouros com aquella mesma indifferença e singeleza com que mais tarde nos descreve a sua primeira expedição na India, mas pelo estylo da descripção se vê que, apesar de ser com pequeno numero de combatentes, foi crespa e soffrivelmente ferida. N'esta carta, depois de pintar a melancholia e saudade que o domina longe da amante, passa a descrever esta escaramuça:

E pois que ja comecei,

Darvos hei conta comprida
De como passo a vida
Nesta vida que tomei;
Vou me ao longo da praia
Sem outros ricos petrechos,
Una adarga ate os pechos
Yen la mano una zagaia.

Vejo o mar embravecer,
Vejo que depois melhora,
Mil cousas vejo cada ora,
Huma só não posso ver:
Assim vou passando o dia
Nesta saudade tamanha,
Mirando la mar d'Espana
Como mengoava e crecia.

Andando só, como digo,
Apartado da manada
Fazendo contas comigo,
Qu' em fim não fundem nada,
Querendo buscar atalho
Para vir ao que desejo,
Vi venir pendon bremejo
Con tresientos de caballo.

Vinhão d'esporas douradas,
E vestidos de alegria,
Com adargas embraçadas
La flor de la Berberia;
Com gritos e altas vozes
Vinhão a redeas tendidas,
Ricos aljubas vestidas,
Em cima sus albernoses.

Gentes de muitas maneiras
E de diversas naçoens,
Corrião a estas tranqueiras
Como a ganhar perdoens;
Mas porque vos não engane
Cousas que outros vos escrevão,
Los bordones que elles llevan

Lanças vos parecerane.

Tudo anda de levanto
Era o campo todo cheo,
Em tudo punhão espanto,
'De nada tinhão receo;
Com grandes vozes e festas
Vinhão bradando de lá,
Cavalleros de Alcalá

No os allabareis d'aquesta.

Comigo mesmo fallando
Como s' a outrem fallasse,
Dizia, quem me lembrasse
Do em que andava cuidando;
E porque tamanho dote
Não se alcança por cuidar,
A las armas Mouriscote
S'en ellas quereis entrar.

Contar feitos esquecidos
He muito contra minh'arte,
Houve mortos e feridos,
Houve mal de parte a parte,
Houve homem que dezia
Na força do moor receo,
Donde estás que no te veo
Qu' es de ti esperança mia.

Pois fallo em tão fraca guerra,

Sinal he de vosso amigo,

Visto como estais em terra

Que ha outras de moor perigo:
E pois por vos mais fisera
Quem faz isto que aqui vedes;
Y que nuevas me traedes

Del mi amor que alla era?

Na elegia a linguagem muda, as badaladas de que falla na primeira carta tinham-se trocado em viva guerra; porém nem a nova terra, nem o novo trato das gentes, nem as armas tão continuadas o podiam

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