Acresce a difficuldade e o embaraço da escolha, porque pullulam os Heroes desde o berço da Monarchia até á fatal epocha em que baqueámos, mas com gloria, em Alcacer-kibir; e desde então apenas nos limitámos, por duas vezes, a quebrar cadeias que nos algemavam, e tirando uma ou outra excepção, os grandes vultos dos primeiros tempos da monarchia decrescem na primeira epocha que seguiu a catastrophe politica, e na segunda o individuo foi a nação, pois os Capitães que nos levaram á victoria não haviam nascido entre nós. D'este honroso embaraço nos tira Camões; Camões não é o individuo, é o symbolo que representa o patriotismo encarnado no Poeta nacional, e a gloria do povo heroico, que não foi imitada nem o poderá ser pelos outros povos, porque não ha já mais mundos novos para descobrir, conquistar e civilisar. Tratando-se da falta de uma sepultura honrosa para o Poeta, disse um escriptor que a escusava, porque a sua sepultura era o mundo, só este o poderia conter; concordo, mas isto não tira que essa sua fama, ou antes da nação, tão largamente espalhada, se não prisme e concentre em um ponto fixo, onde possamos admirar reunidos os raios de tanta gloria. Ergue-te pois monumento nacional, e sympathico, querido de todos, de todos desejado, que representas a fraternidade na gloria, no brio nacional e independencia da patria. Tyrios e Troyanos te applaudem; o mancebo poderá ao teu lado vir inspirar-se de patriotismo, e o forasteiro parando, saudar-te-ha, e invejando o teu passado, Nação outr'ora famosa, dirá comsigo: - Foste um povo de heroes. Ergue-te pois monumento nacional, e realise-se por uma vez este desejo ha tempo latente no coração de todos, e para que se veja que se a Nação tem peccado por obra, não tem peccado por pensamento, lançarei aqui os differentes alvitres e programmas que têem lembrado, para se levar a effeito a realisação d'este projecto. Os primeiros que se lembraram de pôr uma pequena memoria na sepultura do Poeta, foram, como deixámos já dito, o seu amigo D. Gonçalo Coutinho e Miguel Leitão de Andrade, ambos contemporaneos; após estes, Manuel de Faria e Sousa havia encommendado um busto em Roma, para collocar na sua sepultura, porém á sua volta se não achava concluido. Desde esta ultima epocha passaram uns duzentos annos até que acordasse novamente o pensamento de lhe levantar um monumento. Duzentos annos! Não vos admireis, não vos envergonheis que esta é a sorte, e será sempre, dos grandes homens. O Ariosto deveu as honras funebres a um amigo; muito tempo depois da morte de Milton, no côro da Igreja de Saint-Gilles se lia uma inscripção, gasta pelos pés dos transeuntes que a pisavam, que indicava que ali repousava o Cantor do Paraizo Perdido; e sua filha, para ter que comer, casou com um tecelão; e a sua geração, tendo passado pelas differentes phases da indigencia, se extinguiu, sem que se lhe conheça a pista, na India Ingleza. Ainda hoje na sepultura de Shakespeare, se lê esta inscripção: Guillelmo Shakspeare Anno post mortem cxxiv Já vêdes que o amor publico foi tardio! Ao Tasso é agora que se levanta um mausoleu por disposição de Sua Santidade o Papa Gregorio XVI; e ainda ha pouco vimos appellar para a caridade publica uma neta do grande Racine. A primeira vez que entre nós se tratou, com mais seriedade, de levantar uma memoria monumental ao nosso grande Epico, foi pelos annos de 1817 ou 1818. Por esta epocha Joaquim de Lemos de Seixas Castello-branco, sendo Provedor da Junta do Monte pio Litterario, e o Procurador Geral Antonio Maria do Couto, Professor de lingua grega, propozeram em mesa que se promovesse uma subscripção, com o pensamento de levantar um mausoleu a Camões. Approvado o projecto, escreveram para París, onde então se achava D. José Maria de Sousa Botelho, Morgado de Matheus, para serem coadjuvados na sua empreza. O Marquez de Marialva, que tão dignamente representava Portugal n'aquella côrte, reuniu logo na casa da Embaixada os portuguezes: Conde de Palmella, Francisco José Maria de Brito, Conde de Funchal e D. José Maria de Sousa Botelho, para lhes ser apresentado o projecto, os quaes accordaram em votar á Mesa os justos e devidos elogios, e em propor-lhe uns artigos, que em substancia são os seguintes: Que se rogasse a El-Rei lhe concedesse o seu beneplacito, e tomasse a obra debaixo da sua protecção; que as duas Commissões escolhessem mutuamente dois membros para se corresponderem, nomeando por sua parte o Marquez de Marialva e D. José Maria de Sousa Botelho; que se convocassem a concurso nacionaes e estrangeiros; que não se descobrindo os ossos na Igreja de Sant'Anna, se collocasse na parede junto á sua sepultura o epitaphio que lhe pozera D. Gonçalo Coutinho, e se declarasse que esta lapida e inscripção fôra restituida pelo voto nacional; que o mausoleu ou monumento fosse erigido na Igreja do Real Mosteiro de Belem, obtida a licença regia, por ser aquelle monumento fundado por D. Manuel para perpetuar a memoria da navegação de Vasco da Gama, que o Poeta cantou no seu Poema; não podendo ter logar a trasladação dos ossos de Camões, convinha celebrar religiosamente o dia em que se descobrisse o monumento, com o apparato que propõe a Mesa, parecendo conveniente que fosse o anniversario da saída da expedição de Vasco da Gama, e que se fixasse um dia para se lhe fazerem as exequias annuaes; que se convidassem, não só os portuguezes residentes em todas as partes da Europa, mas os estrangeiros que quizessem voluntariamente subscrever, e se abrisse em casa dos Banqueiros Bagenault & Comp.a uma subscripção filial da de Lisboa. Esta resposta, assignada na casa da Embaixada pelos cinco signatarios, é datada de 16 de Novembro de 1818, e acompanhada de uma subscripção de 10:270 francos dos seguintes subscriptores: Por esta occasião se affixava no jornal dos annuncios L'Étoile du Matin um declarando que na casa de Bagenault & Comp.a, em Paris, é na de Pedro F. e Comp.a, em Londres, se aceitavam as subscripções. A este parecer da Commissão de París respondeu a de Lisboa (12 de Março de 1819) conformando-se, apresentando comtudo duas objecções em que a Mesa reparava, pedindo-lhe a sua ultima decisão: a primeira sobre a concorrencia dos artistas estrangeiros, sendo da opinião que o programma sobre esta materia devia limitar-se aos nacionaes, sem que todavia se tolhesse a concorrencia aos estrangeiros, mas não os convidando nunca, nem fazendo d'elles expressa menção, por isso que este monumento devia ser antes nacional que europeu; e emquanto ao local reformava a Commissão o seu primeiro juizo, julgando que a Igreja de S. Domingos, pelas relações de amizade e protecção que devêra o Poeta áquelles religiosos, devia ser preferida ao Mosteiro de S. Vicente, indi cado no primeiro plano da Commissão, e ao de Belem, lembrado pela de París. Por esta occasião nomeou a Commissão dois membros para a correspondencia, que foram: o Provedor auctor da moção, e o Visconde da Lapa. Ás duas objecções da Commissão de Lisboa respondeu a de Paris (30 de Junho de 1819) observando que, sendo sem duvida o desejo de todos que o monumento fosse um primor da arte, não via a duvida de serem convocados a concurso tambem os estrangeiros, exemplo praticado por outros povos antigos e modernos que nos eram superiores nas artes, e por nós mesmos sem desdouro, porquanto ninguem diria que a Batalha por ter sido mestre d'ella um irlandez, David Huguet, e da igreja de Belem outro estrangeiro, que deixem de ser monumentos nacionaes. Que todos os esforços deviam dirigir-se a obter um desenho inspirado pelo engenho, apurado pelo gosto e executado pelo mais habil esculptor. Que na esculptura existia um artista italiano, cuja superioridade não era disputada, Canova, e assim seria muito desejavel que elle se encarregasse, assim como se encarregou, havia poucos annos, de outra similhante para Vienna d'Austria, do famoso mausoleu da Archiduqueza Christina, que se acha erigido na Capella Real, e que assás restava aos nacionaes no bom desempenho do desenho e architectura. Que parecia à Commissão que o local de Belem era o mais bem adequado, mas no caso de algum embaraço ou duvida, pensava que o Mosteiro de S. Vicente, ou a Sé, deviam ser preferidos ao Convento de S. Domingos pela inferioridade da sua architectura, e porque o titulo allegado era inadmissivel, poisque os contemporaneos de Camões, que o deixaram morrer ao desamparo, não mereciam indulgencia e sómente o esquecimento da posteridade. Que emquanto ao requerimento que se devia dirigir a Sua Magestade, para que se dignasse conceder a esta empreza a sua alta protecção, o sr. Embaixador de París estava prompto a dirigi-lo á sua real presença. Terminava recommendando a maior actividade para o proseguimento da obra, porque seria grande desdouro se acaso se mallograsse e desvanecesse. No entanto havia a Commissão em Lisboa (5 de Maio de 1819) organisado um programma para a subscripção em seis artigos, onde se expunham as condições d'ella e fim; a saber: recolherem-se os ossos de Camões a um dos principaes Templos da cidade, no caso de se encontrarem, com a maior pompa e apparato, destinando-se o dia 8 de Julho para este funebre prestito e exequias, por ser o anniversario da saida de Vasco da Gama do porto de Lisboa para o descobrimento da India, applicando-se desde logo quantia certa para a renovação annual das exequias. Este programma de subscripção foi entregue aos Governadores, com todos os documentos, pedindo-lhe a sua sancção e subscripção. Em carta dos Commissarios de Lisboa (18 de Setembro de 1819) se narra o resultado dos passos e diligencias da Commissão, perante os Governadores; extractarei aqui a parte d'ella que diz respeito a estas diligencias. «Fizemos presente em Meza o parecer dos srs. Subscriptores de París, que por V. Ex. nos foi communicado em data de 30 de Junho, e com o qual ella conformando-se inteiramente, nos incumbiu pois de pôr em pratica as medidas que n'elle se apontavam, e pareciam as mais adequadas para dar a este negocio aquelle grau de publicidade e auctoridade que pretendiantos. «Formalizou-se o requerimento que remettemos incluso, e que pareceu á Meza que devia ser em seu nome, e não dos Directores abaixo assignados, por isso que ainda se não tinha principiado a abrir publicamente a subscripção n'esta capital, e que para pôr em effeito a sobredita, se dirigiu o infra escripto actual Provedor da Meza, e com seu representante a cada um dos Governadores do Reino em particular, para pedir-lhes em primeiro logar a sua assignatura, assegurando-os de que a Meza, juntamente com os srs. Subscriptores de Paris, se dirigiriam a Sua Magestade El-Rei Nosso Senhor, pelo seu Embaixador em Paris, a solicitar a sua Regia Protecção. Fizeram-se-lhes patentes n'esta occasião todos os Documentos relativos a esta gloriosa empreza, e que constavam: do Projecto da subscripção; Consulta dos srs. Subscriptores de Paris; Resposta a ella, e ultima decisão em que conviemos; os meios que se tinham imaginado para consegui-la, e a honra emfim que d'ella devia provir á Nação e Patria; temos porém o triste desprazer de annunciarmos que, depois de tantas diligencias, demora e esperas, a final foi a resposta de cada um, que nos dirigissemos a Elles no Governo para ahi decidirem em conferencia sobre isso, e o que cumprimos da maneira que insinuárão, e se vê do Documento que remetto por copia para V. Ex.as verem, sendo o resultado: que os Governadores do Reino estavam promptos a subscreverem, logoque a Meza ou os Directores de Lisboa lhe apresentarem o diploma da approvação de Sua Magestade; mas que antes d'isso julgavam este acto contradictorio à sua auctoridade e representação. » |