pae, para desviar de certos amores, tinha mandado servir na praça de Ceuta, è ali foi victima da embuscada que os mouros armaram ao seu valoroso e imprudente tio D. Pedro de Menezes. Tinha sido parceiro no celebre torneio de Xabregas com o dito Principe, e agora a ambos de dezesete annos os tomava a morte ao mesmo tempo, na madrugada da vida. É uma observação para não ser omittida, que as notas mais profundas, tocantes, maviosas e enternecidas d'este canto funebre são dirigidas á falta do amigo, e n'elle lhe é reservado o primeiro logar. Não admira que quem era tão pouco cortezão, não medrasse muito entre as lisonjas do Paço. Ao voltar a Goa do seu cruzeiro nos mares da Arabia devia o Poeta escrever tambem a sua canção vi, n'esta cidade, começando já a ser combatido dos vaivens da sorte adversa n'este longinquo exilio a que se tinha condemnado para tão longe da patria, talvez por obediencia áquella que, mau grado do coração, lhe impunha por circumstancias pena tão severa; mas que pode influir a mudança do corpo quando com elle vae a alma? a traça do coração não ha ares que a sacudam, não ha distancia que a extinga. Assim acontecia ao nosso Poeta; a saudade, a viva imagem da amante que continuamente se lhe apresentava, a lembrança do bem já passado se avivavam, á proporção que o desalento, o infortunio e a desesperação lhe rasgavam o coração a tão grande distancia do sitio onde gosára tanta ventura; e se alguma vez a esperança adejava algum vôo rasteiro, logo baqueava opprimida com todo o peso da miseria e do infortunio. Esta fluctuação de tão oppostos sentimentos descreve o Poeta em todas as suas poesias escriptas n'estes sitios e n'esta sua canção; por ella vemos que obedecia a um preceito da sua dama, que usando de um rigor necessario punha os mares de permeio, ao mesmo tempo que compadecida o alentava com esperanças. Isto nos parece expressar no Vi ramo d'esta poesia, quando diz que como ao enfermo abandonado dos medicos O amor lhe consentia Esperanças, desejos e ousadia. Mas qual é o cumulo de desventura do Poeta desgraçado! Se a indigencia, se a sorte adversa lhe abafam a esperança, tambem não pode desesperar, nem arrancar do coração um amor que tem n'elle raizes tão fortes; são estes os sentimentos que o Poeta expressa n'esta sua composição, da qual copiâmos parte: Com força desusada Huma ilha nas partes do Oriente, Aonde o duro inverno Os campos reverdece alegremente. A lusitana gente Por armas sanguinosas, Tem della o senhorio. Cercada está de hum rio De maritimas agoas saudosas: Os gados juntamente e os olhos pascem. Aqui minha ventura Quiz que huma grande parte Da vida, que eu não tinha, se passasse, Para que a sepultura, Nas mãos do fero Marte, De sangue, e lembranças matizasse. Se amor determinasse Que a troco desta vida, De mi qualquer memoria Ficasse como historia, Que de huns fermosos olhos fosse lida, A vida e a alegria Por tão doce memoria trocaria. Vejamos agora como ao Poeta era imposta uma penitencia severa: E agora venho a dar Conta do bem passado A esta triste vida, e longa ausencia. Quem póde imaginar Que houvesse em mi peccado Digno de huma tão grande penitencia? Olhai que he consciencia Por tão pequeno erro, Senhora, tanta pena. Não vedes que he onzena? Mas, se tão longo e misero desterro Vos dá contentamento, Nunca me acabe nelle o meu tormento. Dissemos que D. Pedro Mascarenhas tinha chegado a Goa pelo meado de Setembro de 1554. Era D. Pedro pessoa de grande auctoridade, independencia pela riqueza que possuia, e saber e habilidade como havia mostrado nas embaixadas a que fôra á Allemanha e Roma, d'onde trouxe os padres da Companhia. Por estes motivos desejava El-Rei manda-lo por Vice-Rei á India, para reformar todos os abusos que se haviam introduzido n'aquellas conquistas; escusou-se porém elle com a sua avançada idade, até que por fim, instado pelo Infante D. Luiz, de quem era amigo, que o apertou dizendo-lhe que um dos dois havia de ir á India, cedeu, dizendo-lhe que elle tomaria por si todos os trabalhos, e iria acabar por esse mar para não inquietar-se Sua Alteza. Não falleceu no mar como dizia, mas como era de idade tão avançada, pouco foi o tempo que administrou aquelle Estado, pois logo no anno seguinte de 1555, voltando de installar o Mealcão, falleceu em Goa. IX Succedeu-lhe no governo Francisco Barreto, homem por todos os respeitos mui digno de occupar um logar tão elevado e muito bemquisto de toda a gente da India. Houve por esta occasião banquetes, jogos e passatempos que se estenderam pelo inverno dentro, e para abrilhanta-los concorreu o nosso Poeta escrevendo o seu Auto de Filodemo, que foi por esta occasião representado na presença do Governador. Quem bem reflectir n'esta composição observará que o Poeta estava ainda ferido das offensas recebidas em Lisboa, por certo desafogo que apparece em alguns logares d'este Auto. Por occasião d'estas mesmas festas é tradição que escrevêra uma satyra a uns jogos de cannas, de que nos ficou um fragmento, na qual offendia pungentemente alguns fidalgos da India que tinham celebrado aquelle divertimento em honra do Governador. A embriaguez, o jogo, a estupidez eram as qualidades caracteristicas que denunciava d'estes cavalleiros, os quaes apresentava como uma amostra do que eram os homens da India. Talvez por esta occasião compoz outra satyra intitulada Labyrinto, queixando-se do mundo, de muito menos força, e o soneto cxxxxiv, no qual, debaixo da allegoria de Babylonia e Sião, descreve os vicios que reinavam na cidade de Goa, saudoso da sua querida Sião, a cidade de Lisboa. E com effeito, se é veridica a descripção que faz d'esta cidade um viajante estrangeiro (Lindscot), que a visitou poucos annos depois, era uma nova Sodoma. A satyra intitulada Disparates da India, julgo eu que foi escripta posteriormente à sua prisão, depois que regressou de Macau, não só porque se refere a uns certos senhores que deixam os amigos nos perigos, mas porque um dos golpes mais profundos é contra pessoa da magistratura, que talvez tivesse intervenção juridica no negocio da Provedoria da China. O talento do Poeta era tão variado que não ha duvida que, se quizesse empunhar o açoute de Juvenal, fustigaria o vicio com não menos energica indignação do que o poeta romano; n'estas duas amostras de satyra violenta, a atrabilis do Poeta vasou todo o azedume de que em nossos dias vimos eivado um bardo inglez (lord Byron), com a differença que ao nosso o inspirava a aversão ao vicio, e áquelle o orgulho e aborrecimento da humanidade. Mas era n'esta satyra amavel da sociedade, que só fere ao de leve, sem penetrar no fundo do coração, na qual occupou em nosso tempo um logar tão brilhante o celebre Nicolau Tolentino, que o nosso Poeta podia tambem disputar a primazia aos poetas do seu tempo. Alguns epigrammas cheios de uma graça natural, feitos ao Duque de Aveiro, a D. Antonio, Senhor de Cascaes, aquelle feito a Miguel Rodrigues Coutinho (o Fios Seccos) e outros, nos fazem sentir que tão poucos d'esta natureza chegassem até nós, e nos attesta de quão agradavel e entretida leitura seria uma collecção mais copiosa. Se esta critica porém é admittida na boa sociedade e entre amigos, e agrada mesmo ás vezes ao satyrisado de quem provoca tambem jocosas represalias, o mesmo não podemos dizer da satyra seria, picante e mordaz que devia offender os atacados. Tendo porém attenção aos acontecimentos de uma vida tão martyrisada, póde relevar-se este desafogo de mau humor, nem imparcialmente podemos absolver ou culpar o Poeta, vistoque as qualidades boas ou más dos invectivados não chegaram ao nosso conhecimento, e não sabemos se houve uma provocação. X Para o pôr ao abrigo dos offendidos e não por espirito de vingança, como alguns pretendem, ou antes simplesmente com o pensamento de o melhorar de fortuna, enviou o Governador a Luiz de Camões para a China, com o officio de Provedor dos defuntos e ausentes. Se foi vingança, como querem, é força confessar que foi mui adoçada, porquanto lhe conferia um emprego lucrativo, do numero d'aquelles com que os Vice-Reis agraciavam os seus mais favorecidos, e em o qual, segundo affirmam, pôde grangear uma certa independencia. Comtudo, se foi degredo, o que eu duvido, é preciso convirem os que o asseveram, que se o Governador não teve a generosidade de Cesar para com Catullo, a quem convidou para uma esplendida ceia, por certos versos que viu feitos contra elle, este degredo do Poeta foi modificado, com conveniencias e representação, a exemplo do que se praticou com o satyrico romano (Juvenal) desterrado com o pretexto de ir para as fronteiras do Egypto e da Lybia com um cargo honroso no exercito. Alguem houve que quiz attribuir o procedimento de Francisco Barreto a um resentimento de familia, pelas relações que tinha com os Castanheiras por sua mulher D. Brites de Athaide 1, porém isto decae de todo o fundamento uma vez que se sabe que a amante do Poeta não pertencia áquella familia. Depois que Affonso de Albuquerque visitou Malaca, attrahidos os portuguezes com o grande lucro que faziam com o commercio da China, começaram a explorar os seus portos, e a pouco e pouco se foram estabelecendo n'aquellas paragens. O primeiro que parece as visitou foi um Rafael Perestrello, com o qual El-Rei D. João III, em um regimento que deu a Duarte Rodrigues, feitor que foi na armada da China, de que era Capitão mór Jorge de Albuquerque, ordenou se aconselhasse sobre o commercio d'este imperio. Na cidade de Liampó fizeram principal assentada os portuguezes, e ahi tinham povoação de mil e duzentos visinhos, e estavam tão seguros, diz Fernão Mendes Pinto, como se estivessem entre Santarem e Lisboa; tinham todos os cargos da governança, e só lhes faltava terem forca e pelourinho, acrescenta fr. Gaspar da Cruz no seu Tratado da China. Aqui se conservaram fazendo um grosso e lucrativo trato, até o anno de 1542, no qual, em rasão de grandes malfeitorias que fizeram, foram lançados fóra pelos chinas com grande mortandade; e dois annos depois, intentando estabelecer-se de novo no porto de Chincheo, foram novamente expulsos pelos mesmos motivos. Desde esse anno, apesar de uma sentença que os portuguezes obtiveram do Imperador, se fez sempre o commercio com difficuldades 1 Vide nota 37. |