mais esforçados Governadores da India, e tão querido de todos, que quando naufrago e de arribada voltou a Goa, foi tal o concurso de gente que saíu a recebe-lo, que fez exclamar a D. Constantino: «Quantas graças deve dar Francisco Barreto a Deus de o fazer tão bemquisto!» Nem tinha o novo Vice-Rei opinião alguma desfavoravel a respeito do seu antecessor, antes pelo contrario os sete mezes que ali se demorou depois da sua volta sempre correu bem com elle, presenteando-o e mandando-o visitar. XII Em Setembro d'este mesmo anno chegou a Goa D. Francisco Coutinho, Conde de Redondo, para substituir o Vice-Rei. Do tempo de D. Constantino, como consta da carta que lhe escreveu, na qual se queixa da miseria injusta que padece, achava-se o Poeta preso, dizem uns que por certas travessuras, outros que ainda por calumnias, que lhe levantavam tocantes ao officio que exercêra de Provedor dos defuntos e ausentes. Pôde elle justificar-se e obter do Conde, a quem era bem aceito, a sua soltura; e cumpre que se diga em sua apologia, que em carta do mesmo Conde achámos que despachava as causas do Estado com o Provedor mór dos defuntos da India 1; assim se a accusação do Poeta versava sobre erros do officio, foi julgado innocente pela auctoridade superior, a cujo cargo especial estava o tomar-lhe as contas e fiscalisar dos abusos de que era accusado. Estando já para sair da prisão o embargava um fidalgo por nome Miguel Rodrigues Coutinho 2, de alcunha o Fios seccos, por uma certa quantia que lhe havia emprestado. Foi então que dirigiu ao Vice-Rei aquelle celebre memorial, no qual em um estylo jocoso ridicularisava o seu perseguidor, e pedia ao Conde, que estava de partida para ir assentar pazes com o Çamorim, que antes de embarcar o mandasse desembargar com a tenção de o acompanhar na expedição, como parece que o Conde lhe havia promettido: 1 Vide nota 45. 2 Vide nota 46.* Que diabo ha tão damnado, Libertado da prisão devia o Poeta acompanhar o Vice-Rei na apparatosa armada com que foi a Calecut assentar as pazes com o Çamorim. Estabelecida a paz, voltou com o Vice-Rei, que se fez de véla para Cochinf, para despachar a carga das naus e escrever para o reino. Durante o tempo que a armada se demorou n'este porto, se travaram entre a gente d'ella brigas e desafios de que morreram para cima de cincoenta homens, sendo uma das victimas D. Tello de Menezes, fidalgo mancebo, muito bom cavalleiro e grande amigo do Poeta, que por este triste acontecimento escreveu a elegia xx, que mandou para o reino, na qual de- . plora a morte do amigo, e intenta consolar a mãe e irmã. Áquella nova Hecuba que pranteia o filho amado, procura mitigar-lhe a dor com exemplos e consolações moraes, e á filha pede que não maltrate a sua formosura, e procure consolar com os seus affagos a mãe inconsolavel por esta tristissima catastrophe. Recolhida a armada a Goa, continuou o Poeta a gosar a privança do Vice-Rei, servindo de medianeiro, e empregando o seu valimento a favor do velho Garcia de Horta, medico e naturalista, quando imprimiu o seu livro dos Colloquios dos simples e drogas da India; e do seu amigo Heitor da Silveira, quando este, tambem, como o Poeta, soldado e pobre, dirigiu um memorial ao Vice-Rei, pedindo-lhe auxilio contra a falta de meios pecuniarios que o opprimia. Estas relações de Camões com o Conde de Redondo eram já do reino, pois nas suas poesias encontramos um soneto a que deu assumpto o queimar-se no rosto com uma véla accesa sua filha D. Guiomar de Blasfet. Por occasião da sua soltura, ou na volta a Goa, é que teve logar o celebre convite, que fez a uns fidalgos que então andavam na India, para uma ceia, cujas iguarias não estavam pintadas nos pratos como as de Heliogabalo, mas descriptas em jocosas trovas; sendo todavia de suppor que a segunda coberta era mais nutriente. Os fidalgos que assistiram a este convite foram D. Vasco de Athaide, D. Francisco de Almeida, Heitor da Silveira, João Lopes Leitão e Francisco de Mello (o manuscripto que possuo acrescenta Jorge de Moura), todos fidalgos mui illustres. Mas esta fugitiva alegria que lhe raiava pela convivencia e agradavel trato dos amigos tinha de converter-se em breve em uma apagada tristeza pela perda dos mesmos. Se é triste cousa o morrer, não o é menos uma vida mui prolongada: de todos os flagellos que acompanham a velhice insupportavel, como lhe chama Shakspeare, de todos o mais acerbo, a meu ver, é o isolamento. Agora vemos estalar como vidro o mancebo que vimos nascer; paes, mulher, filhos, parentes e amigos, abandonam-nos deixando apoz de si o vacuo irreparavel da saudade; cáe como pomo maduro o velho de quem fomos companheiro na infancia; desapparece a geração que nos viu nascer; a que vem não a comprehendemos, e incommoda-se com o nosso commercio: sós, isolados, vegetâmos uma vida incommoda, e como tronco carcomido, que escapou por inutil ao machado na vasta destruição da floresta, aguardâmos o mais pequeno sopro que desarreigue as ultimas raizes que ainda nos prendem à terra. Entrava o Poeta apenas no outono da vida, e já se via cercado de todos os incommodos de uma velhice prematura, aggravados ainda pela magua que lhe causava o desastroso fim dos seus mais intimos amigos. Havia apenas dois annos (1559), que o seu tão querido amigo D. Alvaro da Silveira terminava a vida com uma morte tão cruel, degolado pelos turcos, quando seu irmão, o jesuita Gonçalo da Silveira, não menos estimado do Poeta, acabava a vida recebendo a corôa do martyrio nas terras do Monomotapa (1561), n'esses mesmos sitios que poucos annos depois tinham de receber o ultimo suspiro d'esse tão falsamente preconisado inimigo do Poeta, o valoroso D. Francisco Barreto. Era D. Gonçalo da Silveira o decimo filho do Conde da Sortelha, Doutor em theologia e o sexto Provincial da India, um dos apostolos d'aquelle estado o mais ardente nas missões; orçava pela idade do Poeta, e foi para a India no anno de 1556, d'onde mais tarde passára a missionar em Africa (1560), onde, depois de haver feito grandes conversões, foi martyrisado pelos cafres, os quaes, receiosos que o seu corpo contaminasse as terras, por o julgarem feiticeiro, o lançaram ao lago d'onde nasce o rio Mossenguese. D'ahi, indo pelo rio abaixo, acrescenta a lenda, que assás poetica, o levaram uns leões e tigres, que o guardam em um sitio despovoado, para onde ninguem se approxima com medo d'estas feras, e onde formosas aves entoam de continuo melodiosos cantos, vendo-se ali bruxelear luzes. Tal era a intima amisade que existia entre o Poeta e o missionario, que sendo elle no seu poema tão parco em fazer o elogio dos contemporaneos, e que passa mesmo pelas missões do Japão sem fazer expressa menção de S. Francisco Xavier, reserva dois versos para consignar o martyrio do amigo: Onde Gonçalo morte e vituperio Ainda as lagrimas do Poeta não estavam bem enxutas pela perda do amigo, e já as ondas do mar tragavam e recebiam no seu seio outro, não menos prezado, seu companheiro e camarada e como elle poeta, um I dos convidados da ceia, João Lopes Leitão, que, como se deprehende de alguns versos de auctores contemporaneos, morreu afogado longe da patria. Por este tempo, em Fevereiro de 1564, teve logar tambem a morte do Vice-Rei, que o Poeta muito amava, e a quem deveu obrigações e uma posição melhorada. XIII Fallecido o Vice-Rei se abriu a primeira successão e se achou por successor D. Antão de Noronha, que no anno de 1562 tinha vindo para o reino; e como estava ausente se abriu a segunda, e se achou João de Mendonça, que estava presente, e tinha acabado de servir o cargo de Capitão de Malaca, o qual tomou posse do governo na ausencia de D. Antão de Noronha, que a 3 de Setembro do mesmo anno chegou á India. A morte do Vice-Rei, juntamente com os outros desgostos, devia causar ao Poeta uma impressão bem dolorosa, e aggravar a sua má situação, privando-o dos recursos e protecção que podia esperar do valimento d'aquelle fidalgo. Poucas mais noticias se podem adiantar sobre o resto do tempo que se demorou na India: consta comtudo das suas poesias que cultivou uns novos amores, e foi objecto d'elles uma dama que celebrou debaixo do anagramma de Dinamene, e que morreu afogada indo de viagem; mas isto não nos deve admirar, pois sabemos que o Poeta, apesar de o abrasar o mais intenso fogo pela sua Natercia, se chamuscou em varias chammas. Comtudo esta nova impressão parece ter sido passageira, e como um Oasis que se apresentava na aridez do infortunio, pois nas suas composições, onde desafoga com tanta côr de verdade (principalmente nas canções), e expõe com tanta poesia e verdadeiro sentimento a desesperada situação da sua existencia, sempre se encontra associada a saudade dos antigos amores. Ignorâmos tambem quaes foram as outras expedições militares em que serviu; mas pelas suas poesias sabemos que discorreu a India por todas as partes regando-a com o seu sangue; Uma tradição constante, ajudada de bom fundamento, dá o Poeta residindo algum tempo em Malaca e nas Molucas. Basta lançar os olhos pelo Canto x dos Lusiadas para se conhecer pelo vigor do pincel e exactidão das tintas, que quem debuxou o quadro d'estas paragens, as pizou com os seus pés. Uma incisão, que parece observar-se n'este Canto desde a estancia cXXXII, denota que elle não foi feito de um só jacto, porém elaborado desde esta estancia depois que o Poeta visitou de novo estes sitios, ou por conveniencia de interesses, ou no exercicio das armas nas expedições militares. A verdade da descripção ocular é tão clara que até nos pinta a differença dos dois vulcões, do de Ternate que lança do fervente cume chammas ondeadas, e do de Sumatra que vapora tremulas chammas. Tendo começado a sua descripção pela costa da Africa, costeando a da India, fazendo algumas excursões ideaes ao interior, e penetrando no mar Roxo e golpho Persico, segue sempre costeando até o Japão; terminando a primeira derrota, começa de novo por Ternate, Borneo e as outras Molucas, repete a descripção de Sumatra, descreve Ceylão, as Maldivas, e termina a descripção pela ilha de Madagascar defronte de Moçambique, ultima terra da Africa que o Poeta tocou em sua volta para o reino. Que elle esteve n'estes sitios não nos parece duvidoso, antes o temos por certo; porém no que não podemos concordar é na epocha que assignalam os differentes biographos, porque vae de encontro a toda a chronologia rasoavel da vida do Poeta. Até o seu despacho, ou, como querem alguns, degredo para a China, as expedições militares do Poeta foram para mui opposto sitio; durante a sua estada em Macau não soffre tão pouco tempo de residencia uma tão larga navegação; alem d'isto, como temos observado, assim como a primeira parte d'esta descripção é feita debaixo das impressões das primeiras viagens, a segunda o é com a memoria ainda fresca da ultima visita que fez aquellas remotas partes da Asia. Depois da sua volta da China para Goa, temos a certeza, derivada das suas poesias, que o Poeta todos os annos residiu em Goa, durante o tempo que não militava nas armadas até o anno de 1564, como é evidente da chronologia de algumas das suas poesias, que aqui apresentamos para mais perfeita demonstração do que se as severa. Por fins do anno de 1558 estava o Poeta em Goa, onde o vei encontrar preso por ordem do Governador Francisco Barreto o Vice-Rei D. Constantino de Bragança. O começo do anno seguinte de 1559 provavelmente o passou ainda na prisão; no fim d'este anno, ou antes no |