ADVERTENCIA PRELIMINAR Entre o copioso numero de nomes historicos e esclarecidos que illustraram Portugal sobresae, com particular brilho e esplendor, o de Luiz de Camões. Como soldado serviu a patria com a espada, apresentando em seu rosto honrosas cicatrizes que abonam o seu valor; como poeta, em cantos inimitaveis, inspirados de ardente patriotismo, e de magestosa, arrebatada e grandiloqua poesia, legou á posteridade as heroicas e gloriosas façanhas dos nossos antepassados, fazendo reflectir sobre a terra que lhe deu o nascimento uma aureola de gloria que eclipsou tudo quanto a historia dos povos apresentava de mais grandioso, e que os seculos futuros nunca poderão extinguir. E na verdade, a quem, se um pouco de sangue portuguez lhe gira pelas veias, deixará de lhe bater o coração com um nobre amor de patria á leitura do seu poema? Quem, ao ler em suas poesias o seu amor mallogrado e infortunios, não dará sequer uma lagrima ao vate infeliz? Quem deixará pois, até onde chegarem as suas forças, de concorrer para illustrar o nome do Poeta extraordinario que, no meio dos maiores revezes e contratempos da vida, emprehendeu e levou ao cabo levantar o monumento da nossa gloria nacional? É divida sagrada que cabe a todo o portuguez solver, a todo aquelle a quem não é indifferente a honra da patria; paguemos pois nós tambem o nosso feudo de gratidão, e junte-se este nosso pequeno brado ao pregão universal. Desde os mais verdes annos que as suas poesias foram para nós a mais suave e deleitosa leitura; e este gosto se avivou com a idade, quando nos reputámos mais aptos para poder avaliar as innumeraveis bellezas que as adornam. Cousa alguma reputámos desde logo alheia que podesse ter relação com o grande Poeta, e dobrámos a nossa solicitude e cuidado em inquirir e estudar o maior numero de escriptos que sobre a sua vida e composições se teem emprehendido. Sentindo porém ver quão poucas memorias se tinham offerecido áquelles que se haviam empregado n'estes trabalhos, a nós mesmo fizemos esta interrogativa: «E não será possivel alcançar mais?—a resposta foi mui simples: experimen te-se. Acobardava-nos entretanto o pouco fructo que haviam colhido os escriptores que nos tinham precedido, e a esterilidade de noticias que haviam encontrado por culpa d'aquelles a quem em tempo opportuno cabia o transmitti-las. Embaraçava-nos ainda mais o trabalho litterario e critico, executado pelo fallecido Bispo de Vizeu, digno ornamento da Igreja Lusitana, do illustre prelado, que, tambem foragido em terra alheia, quiz que o sol da sua patria lhe aquecesse os regelos dos ultimos dias da velhice, e, a exemplo do Poeta, de cuja vida foi historiador, se não contentou sem vir morrer n'ella. Dava-nos não obstante alento, no meio d'estas difficuldades que se nos apresentavam, o empenho e boa vontade de que nos sentiamos animados; incitava-nos um vehemente enthusiasmo, e mais que tudo o desejo de acertar despido de toda a vaidade. E tão isentos d'ella nos sentiamos, que, se fosse vivo o illustre prelado biographo do Poeta, era tenção nossa não só submetter á sua censura este Ensaio, porém, se os seus annos e fadigas lhe permittissem refundir o seu antigo trabalho, e elle o quizesse, de boa vontade fariamos sacrificio de qualquer pequena gloria que nos cabe d'estas indagações, para que o publico fosse melhor servido, e o Poeta tivesse melhor obreiro para lhe levantar mais perduravel e acabado monumento. A certeza porém de que este nosso trabalho poderia offerecer algum interesse pela novidade de alguns documentos até hoje occultos, e a lembrança de que fariamos algum serviço á litteratura portugueza se com elles aclarassemos algumas particularidades da vida do Poeta, nos deu afouteza para o publicar, aproveitando ao mesmo tempo este ensejo para darmos tambem o nosso contingente de conjecturas, de que tem de compor-se em parte as biographias do Poeta. E na verdade muito para lastimar que a maior parte dos seus contemporaneos, e entre estes especialmente Manuel Correia e Diogo do Couto, guardem um tão reprehensivel e ingrato silencio sobre o illustre Poeta seu contemporaneo. Os Commentarios do primeiro nem preenchem litterariamente a expectação do que se esperava do correspondente de Justo Lipsio, nem satisfazem a curiosidade publica pelas noticias que havia direito a exigir de um homem que tratou de tão perto o nosso Poeta, e a quem elle mesmo havia instigado a imprimir o seu Commentario. O Tasso foi mais feliz com o seu Manso, pois não se pode ser mais laconico com as noticias que o commentador portuguez deixou do seu amigo, podendo-as subministrar interessantissimas, especialmente da publicação dos seus Lusiadas e dos ultimos tempos da sua vida, pois era Cura na mesma freguezia onde residiam seus paes. Ainda assim aquellas poucas que nos deixou as reputámos interessantes, e as aproveitámos para desembrulhar as confusas asserções sobre a perseguição que dizem que o Poeta experimentou na India, e que tão confusamente têem tratado quasi todos os biographos. Diogo do Couto foi, como elle diz, o companheiro, mata 1 Não posso explicar o laconismo de Diogo do Couto relativamente a Camões, senão porque se dispunha a dar-nos a biographia completa do Poeta nos Commentarios que escreveu aos Lusiadas; eis tudo quanto nos diz na Decada vi sobre o Poeta: Em Moçambique achamos aquelle Principe dos Poetas do seu tempo, meo matalote e amigo Luis de Camões, tão pobre que comia de amigos, e para se embarcar para o Reino lhe ajuntamos os amigos toda a roupa que houve mister, e não faltou quem lhe desse de comer, e aquelle inverno que esteve em Moçambique acabou de aperfeiçoar as suas Lusiadas para as imprimir, e foy lote e amigo de Camões na India; comtudo, sendo ás vezes tão minucioso em narrar as acções de homens vulgares, nada nos diz nas suas Decadas dos feitos militares praticados pelo Poeta nos dezeseis annos que militou na Asia, dando-nos apenas informação, na Decada vin, do estado de miseria e abandono em que o foi encontrar em Moçambique, do seu regresso para o reino, e da perda do seu Parnaso, reservando-se sem duvida para nos dar noticias mais circumstanciadas nos Commentarios que escreveu sobre os seus Lusiadas. Pedro de Mariz, Guarda-mór da Bibliotheca da Universidade de Coimbra, escreveu as noticias que precedem o Commento do Licenciado Manuel Correia, que saíu a publico no anno de 1613, em demasia escassas comtudo para quem escrevia tão proximo do tempo em que floresceu o Poeta, de quem devia ser ainda contemporaneo, pois quatorze annos depois da sua morte, isto é, no de 1594, já publicava pela imprensa os seus Dialogos de Varia Historia. Este escriptor, em rasão da sua naturalidade e relações, era o mais apto para nos dar conta do tempo da frequencia do Poeta na Universidade de Coimbra, onde não só, em rasão do emprego que exercia, poderia extractar a certidão da sua matricula e formatura, mas ainda haver outras noticias de seu proprio pae Antonio de Mariz, que na mesma Universidade exercitava o officio de impressor. Estes documentos biographicos se procuraram a pedido nosso em Coimbra, mas não se poderam já en contrar. Manuel Severim de Faria, pouco tempo depois, no anno de 1624, publicou uma nova biographia, escripta com melhor critica; mas é forçoso notar-lhe a mesma pouca diligencia escrevendo muito em hum livro que hia fasendo que intitulava Parnasso de Luis de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtarão, e nunca pude saber no Reino delle, por muito que o inquerí, e foi furto notavel, e em Portugal morreo este excellente Poeta em pura pobreza. » 2 Consta-nos que no Archivo da Universidade de Coimbra existem matriculas muito antigas que vão ao tempo da trasladação e registos das formaturas; porém tendo-se ali procurado a do nosso Poeta não se encontrou: parece-me que a publicação d'estes, por ordem chronologica, seriam documentos preciosos para a Bio-bibliographia Nacional. Devem tambem existir no mesmo Archivo theses impressas antigas, pois umas tivemos nas mãos relativas ao anno de 1549: tambem a sua publicação seria bastante interessante para a historia litteraria da Universidade. nas investigações, em tempo ainda para se fazerem tão opportuno. O seu principal merecimento consiste em ter-se aproveitado das poesias de Camões para derivar a sua biographia, e addiciona-la com alguns novos factos e melhor critica. Podia, principalmente sobre o melhoramento da sepultura, dizer-nos mais alguma cousa, quando estava ainda viva na lembrança de todos a memoria do pequeno tributo de amisade que ás cinzas do amigo consagrára D. Gonçalo Coutinho; porém nem ao menos a visitou, e por isso, fiando-se em Pedro de Mariz, errou o epitaphio, que na edição das Rythmas do anno de 1614, um anno posterior ao Commentario do Licenciado Manuel Correia, saíu correcto, seguindo comtudo o primeiro erro todos os biographos do Poeta. Admira mesmo como um escriptor estimavel, como sem duvida é Manuel Severim de Faria, e que bastante explorou as noticias patrias, se contentou com tão pouco. Poucas esperanças se podem conceber, aindaque appareçam as notas que tinha escripto sobre os Lusiadas, que estas revelem mais alguma cousa, porquanto não foram desconhecidas a Faria e Sousa, que d'ellas se teria aproveitado. Do mesmo auctor existem uns tres tomos de documentos genealogicos, extrahidos da antiga Torre do Tombo antes da sua trasladação; mas infelizmente, vindo ali apontada a familia do Poeta, as paginas onde devia tratar d'elle se encontram em branco. Manuel de Faria e Sousa quiz preencher a lacuna que deixaram os seus antecessores, e ás suas curiosas investigações devemos muito do que sabemos da vida e escriptos do Poeta. Elle foi, conforme o juizo de um sabio portuguez, muito sagaz nas suas conjecturas, aindaque um pouco preguiçoso em desatar as difficuldades que se lhe offereciam. Ás suas indagações na Casa da India se deve o saber-se ao certo o anno do nascimento de Camõse e a epocha em que se alistou para o serviço da India, e á descoberta da Egloga xv o nome da amante. Se tivesse porém solicitado da repartição competente de Goa3 a fé de officio do Poeta, documento que 3 Se os biographos que me precederam tivessem recorrido a este meio, teriamos desembrulhada a parte mais interessante da vida do Poeta, o que me parece que estava ao seu alcance, pois tenho lembrança de ver uma fé de officio |