O mundo com seu nome tem sugeito, Que inda é maior toda redondeza, E se de Christo a fe lhe não faltára, Póde ser que seu nome aos ceos chegára.
De mil procos ao pae era pedida, Sem outro premio igual, em casamento Mas tudo desprezava, que na vida
Não ha cousa que lhe encha o pensamento; E dizem que se tinha offerecida
Á vida singular e casto intento
De Diana e das mais nymphas da terra, Que pisam tras a caça o valle e a serra.
N' este exercicio alegre, em que se esmera, O mais do tempo nas montanhas passa Seguindo os passos d'uma e d'outra fera, Té
que a tiro lhe chega, e alli a traspassa; Ora emboscada entre alto mato espera Tendo so para a setta a vista escassa, Que do arco despedida o cervo prega Incauto que c'o sangue o campo rega..
Tambem a côço toma o leve gamo, Tam ligeira tras elle se arremessa Despois que o enganou c'o vão reclamo, A quem acode com ligeira pressa: Agora aponta ao passaro no ramo, E antes de ser sentida o atravessa;
Ensaio breve, com que a mão se affouta Para o porco, que fez, dentro na mouta.
Ás vezes enfadada na floresta,
Quando arde a calma, quando o sol se empina, No regato florído passa a sesta,
E na mão de alabastro a face inclina: Ora os olhos á fonte clara empresta, E brincando co'a agua crystallina, A veia se perturba e se mistura Porque ella se não turbe co' a figura;
Que a ver a image bella n'agua clara, O lindo asseio e gracioso riso, (Se per ventura risse) perigára Perdendo-se por si como Narciso: Mas ella é d'ésta glória tanto avara Que por se não mostrar, turba de aviso A fonte, que da mesma agua se cia Lhe fuja co' a figura, pois corria.
Ás vezes co' as donzellas escolhidas, Que a seguem n'ésta deleitosa pena, Debaixo do tecido das floridas
Árvores, danças mil airosa ordena : Espantam-se das silvas as fingidas Deidades, e tocando a doce avena, Os passos com som rustico acompanham, Porêm de longe, que chegar estranham.
Ai Zara! e que vida ésta tam segura Em bosque fresco, de pezares falto, Onde o maior tumulto é d' agua pura, Das aves do ar o murmurar mais alto! Agora que te apartas da espessura, Logo encontras com pena e sobresalto, Que n' alma suspiraste quando viste Tam severo spectaculo e tam triste.
E sendo então alli certificada
Dos termos que seu pae c'os christãos usa, Ficou c'o sacrificio perturbada
E pela causa d'elle assás confusa, E manda que não seja executada A sentença cruel em quanto escusa, A piedade e compaixão movida, C'o
pae uma miseria tam crescida.
Pararam d'improviso os homicidas Á lei que lhes posera obedecendo, E a seu mal grado ás innocentes vidas O castigo inventado suspendendo; Que as palavras de Zara encarecidas Comsigo sempre imperio véem trazendo, Com que o mais fero e deshumano peito Em brandura converte e o faz sugeito.
Os condemnados miseros ergueram Os olhos tristes para aquella banda
E a causa de seu bem reconheceram,
Causa em si grande, e grande no que manda;
Foram para fallar, emmudeceram ;
Ella os olhou, e seu tormento abranda,
E como ja remedio lhes deseja,
Parte a buscá-lo porque cedo o veja.
E como o caso compaixão lhe inspira, Sobr'outra natural que n'ella mora, Ao pae e rei, que os braços ja lhe abrira, Éstas palavras diz, e entre ellas chora: Se mimosa de vós me não sentíra, Não ousára tentar se o sou agora Alcançando, senhor, por magoada, Perdão para ésta gente condemnada.
Quanto mais que n'um tempo que ameaça Pelos mesmos Christãos guerra tam crua, É perigo que a todos embaraça
Terdes contra os de paz espada nua; Que se a fortuna próspera os abraça, A vossa crueldade aviva a sua, E dais a imigo vencedor motivo Para a ferro metter quanto achar vivo.
Portanto, se algum mimo vos mereço, Com ésta petição a salvo saia, E se ha difficuldade, que eu conheço, A culpa sobre mim de tudo caia.
inda que fora de mor preço, (Segundo de affeição todo desmaia) Lhe concedêra a cousa que lhe pede, Para todos perdão logo concede.
QUEVEDO, Afonso Africano.
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