religioso, cahiu em um tal cretinismo, que é Portugal o paiz unico aonde não existem festas nacionaes. Sem tradições não ha theatro; as tradições da historia portugueza estão nas paginas das chronicas monasticas, que o povo não conhece. O mosarabe ficou triste e desconfiado, incapaz de se apaixonar: a revolução de 1640 foi feita pela aristocracia, e a revolução de 1832 nasceu da classe media, producto hybrido de colonos e negociantes estrangeiros com a aristocracia. Anullado insensivelmente o elemento organico d'esta raça, a nossa nacionalidade é uma ficção pura. O povo portuguez conheceu o theatro hieratico da edade media, a que ainda hoje pelas aldeias se chama Auto, mas esse mesmo fraco rudimento, que o seu genio poetico poderia desenvolver, foi-lhe prohibido com excommunhões nas Constituições dos Bispados. Alguns poetas, como Gil Vicente, tentaram a fundação do theatro nacional; deu-se este phenomeno no seculo XVI, justamente quando se consolidava o cesarismo, e o elemento mosarabe caía no ultimo gráo de atrophia. Por isso foram baldados todos os esforços; a obra de Gil Vicente morreu com elle. A historia do nosso theatro é a narração d'este esforço sublime, mas infelizmente artificial e não continuado. CAPITULO I Origens do Theatro portuguez Da tradição dramatica na edade media'da Europa. Os Nataes, como dramas liturgicos. - Vestigios do drama religioso, citados e prohibidos nas Constituições dos Bispados. —- Os Mômos, Entremezes e Autos conhecidos na corte de Affonso v e Dom João II. Festas pelo casamento da Infante Dona Leonor. O Entremez do Anjo, pelo Conde de Vimioso. Festas pelo casamento do Principe Dom Affonso. Gil Vicente frequenta a côrte de Dom João II, aonde recebe as suas primeiras ideias dramaticas. Deve admittir-se a influencia hespanhola das eclogas de Juan de la Encina sobre o genio de Gil Vicente? Preferencia que se deve dar á influencia franceza. O theatro nunca desappareceu totalmente da Europa; já em 452, o Concilio de Arles excommungava os que se entregassem aos jogos scenicos; o Concilio de Africa notava-os de infamia. Tambem o Concilio de Chalons em 813, o segundo Concilio de Reims, e o terceiro de Tours, condemnaram os jocos dos histriões, prohibindo aos bispos o assistirem a elles. (1) Do mesmo seculo da fundação do reino de Portugal, encontramos um documento, que nos descobre o fio da tradição dramatica; é a palavra Arremedilho, que o erudito Santa Rosa de Viterbo interpreta como uma (1) Não tem conta as authoridades que comprovam esta verdade; podem vêr-se nas: Mem. de l'Academie des Inscriptions et Belles-Lettres, t. XXVII, p. 219 a 225: - Memoires sur les jeux sceniques des romains et sur ceux qui ont precedé en France la naissance du poeme dramatique, par Duclos. especie de farça mimica. Notavel coincidencia! Começaria o theatro portuguez pelas pantomimas rudes, e não conheceria nunca o nosso povo outra forma, por isso que a unica designação dramatica inventada por elle foi a palavra bonifrate? (1) Eis o que diz Viterbo ácerca da palavra Arremedilho: «No anno de 1193, El-rei Dom Sancho 1, com sua mulher e filhos, fizeram doação de um Casal dos quatro, que a corôa tinha em Canellas de Poyares do Douro, ao farsante ou bobo, chamado Bonamis, e a seu irmão Acompaniado, para elles e seus descendentes. E por confirmação ou rebora, se diz: Nos mimi supranominati debemus Domino nostro Regi pro roboratione unum arremedillum.» (2) Assim como a influencia da lingua d'Oil vulgarisou em Portugal as tradições epicas da edade media, por a mesma via nos vieram as ideias dramaticas; o nome de Bon Amis, a quem Dom Sancho fez a doação, assim leva a crêr; foi pela exigencia de um serviço feudal grotesco que appareceu em Portugal a primeira ideia do theatro. Tambem pelo symbolismo juridico dos nossos foraes, o espirito communal francez nos fez imitar os grandes dramas ou cerimonias da penalidade? (3) Ainda que o genio provençal não conhecesse a forma dramatica, foi egualmento pela influencia da lingua d'Oc na aristocracia portugueza, que nos pri (1) Nome puramente portuguez dos espectaculos a que os hespanhoes chamam titeres, e os francezes marionettes. (2) Doc. da Torre do Tombo, apud. Elucidario, v.o cit. Historia do Direito portuguez, p. 56. meiros seculos da inonarchia se conheceram as Côrtes de Amor, que tem vagas analogias com os espectaculos scenicos. No Cancioneiro da Ajuda vem estes versos, que nos fazem presentir a existencia d'essas Cortes, em que se debatia entre damas e cavalleiros uma intrincada casuística sentimental: E vej'a muitos aqui razoar: Que a mais grave coita de soffrer O povo, que desconhecia esta poesia subtil, cantava as suas prosas e hymnos farsis na liturgia christã, até que a pressão do catholicismo lhe impoz silencio. As Constituições dos Bispados de 1534 a 1589, revelam-nos na sua prohibição uma poesia dramatica bastante arreigada nos costumes populares: ellas não permittem que se façam representações, ainda que sejam da Paixão de nosso senhor J. C. ou da sua ressurreição ou nascença.» (1) Se advertirmos, que o povo não admitte de repente costumes novos, nem os abandona com facilidade, temos por esta prohibição canonica determinada a existencia de um theatro hieratico em Portugal nos tres ultimos seculos da edade media. A adversativa ainda que, mostra que não eram sómente espectaculos religiosos os que se usavam. O espirito aristocratico do Concilio de Trento procurava banir o costume simples (1) Const. de Evora, const. x, tit. 15, anno de 1534. e natural do povo; muitos Autos de Gil Vicente ainda foram representados nas Egrejas. As formas liturgicas do christianismo eram eminentemente dramaticas e o povo tomava parte nas cerimonias do culto; quando Gil Vicente escreveu, a sua primeira forma foi a das Vigilias do Natal. Á medida que o poder real se consolidava, a vida da nação ía-se concentrando na côrte; é por isso que antes de terminar a edade media, vemos obliteraremse os signaes da vida d'este povo. O theatro tornou-se apanagio das festas do paço. Aonde reinava o despotismo, aí se extinguia a espontaneidade da expressão: a forma mais usada nos divertimentos scenicos da côrte de D. Affonso v e Dom João II era a mimica. No casamento da Infanta Dona Leonor, irmã de el-rei Dom Affonso v, com o Imperador Frederico III da Allemanha, representaram-se varios Mômos, a que um poeta do Cancioneiro geral, tambem chama Autos: Eram vossos tempos Autos, Nas festas da Imperatriz, Mas agora calar chyz, Nem é tempo de crisautos. (1) Estes versos são de Duarte de Brito, a João Gomes da Ilha; em Ruy de Pina achamos referido este mesmo facto, narrando, que representaram nos Mômos el-rei D. Affonso v e os infantes seus tios, talvez o in |