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sibilidade. Além de dar d'isso muitas e muitas provas em varios logares do seu poema, revela-o principalmente no livro vi de que já vos fallei, e no encantador episodio de Niso e Eurialo. Tudo quanto se possa imaginar de dôce e terno na amisade e no amor maternal, é por elle apresentado com tão delicada sensibilidade, que enternece até ás lagrimas. Quando, nos Elysios, Anchises mostra a Eneas a sombra de Marcello, feriu tão vivamente o coração magoado de Octavia, que esta princeza cahiu com um deliquio nos braços do imperador, seu irmão. Tinha uma alma angelical o poeta de Mantua.

Pois ainda n'essa parte lhe não cede o passo o nosso Camões, embora não dispozesse de uma lingua tão melodiosa e terna, como a latina.

Abri os LUSIADAS, e lêde a sublime Elegia sobre a infausta sorte da infeliz Ignez, e sentireis uma lucta tremenda entre o odio e a compaixão. Odio para os descaroaveis matadores da infeliz princeza: compaixão por uma gentil senhora, que perdia a um tempo o amor do estremecido esposo, a vida propria, e, o que é mais, as meigas caricias dos innocentes filhinhos. Lance profundamente commovedor, é verdade, mas que não teria as lagrimas das gerações, se a meiga sensibilidade do nosso poeta lhe não imprimisse a dolente angustia, que rebenta dos seios d'alma..

Camões é tão notavel pela sensibilidade, que no meio de colericas ameaças faz destacar este seu dom angelico, divino. O Adamastor troveja horrores sobre os portuguezes, e entre outros avulta o fim tra

gico de Manoel de Souza de Sepulveda e de sua desolada familia. Não posso furtar-me a reproduzir a ultima estancia, por ser de molde para avaliarmos a alma do nosso poeta:

E verão mais os olhos, que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dois amantes miseros ficarem
Na férvida e implacabil espessura:
Alli, depois que as pedras abrandarem
Com lagrimas de dôr, de magua pura,
Abraçadas as almas soltarão

Da formosa e miserrima prisão.

Quando o poeta o diz assim, quem poderá dizer ou mais ou melhor?

E a penosa mágua, com que o mesmo monstro horrendo conta a historia dos seus amores? É tão terna, tão branda, tão sentida, que nos leva a compadecermo-nos d'aquelle desventurado.

Forçoso me é sahir dos LUSIADAS para dar a mais notavel prova da sensibilidade de Camões. Refiro-me ao inimitavel soneto:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo d'esta vida descontente,
Repouza lá no céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Ethereo, onde subiste,
Memoria d'esta vida se consente,

Não te esqueças d'aquelle amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que póde merecer-te
Alguma coisa a dôr que me ficou
Da magoa, sem remedio, de perder-te;

Roga a Deus, que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Como o espirito se levanta nas azas da saudade até ás regiões do empyreo! Que suavidade de resi- . gnação! Que desejo ardente de morrer em vida! Que amor tão casto aquelle! Seja a oração que todos rezem diante do tumulo d'aquellas que foram a metade da sua alma!

Tenho terminado o parallelo promettido no programma, mas, se a vossa bondade m'o permittisse, desejava dizer alguma cousa ainda sobre Camões.

Principiarei por confessar-vos que não julgo o nosso épico impeccavel, e, se tivesse de o julgar isoladamente, não hesitaria em apontar-lhe as maculas, fria e serenamente; todavia considero grave injustiça attribuirem-lhe defeitos que elle realmente não tem.

Accusam-n'o de que foi um poeta historiador, ou antes, que tomou muito da historia para o seu poema.

Foi obrigado a isso, nem podia deixar de o fazer.

A historia portugueza d'aquelles tempos já em si era uma verdadeira epopêa. Os factos andavam aureolados d'aquella claridade, que os fazia. contemplar de todo o mundo. É por isso que o seu poema tem de singular não ser uma epopêa unica; é o conjuncto de muitas epopêas. Os LUSIADAS são o pantheon dos heroes de Portugal. Nem podia ser de outra sorte; que a sua Musa foi o amor da patria.

Notam-lhe tambem no canto Ix algumas liberdades na descripção da Ilha de Venus.

Não podemos partilhar d'uma tal opinião. Os escriptores devem ser julgados pelos costumes do seu tempo, e, se assim o fizerem, não o taxarão de livre, bem como, se o confrontarem com alguns escriptores modernos, deve ser tido por um exemplar de pudicicia. Gil Vicente, cujas composições se representavam no paço perante a familia real e a côrte, dá-nos a evidencia dos costumes d'aquelle tempo. A propria Inquisição, que tanto contribuiu para deturpar o poema, nada encontrou censuravel no to

cante a costumes.

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Na descripção da Ilha de Venus quiz o poeta pôr em toda a luz a opulencia da sua imaginação, e a profundeza de seus conhecimentos.

Pelo lado imaginativo é a Ilha de Venus a verdadeira mansão das delicias. As flores, as fructas, as florestas, os arroios, os lagos, a luz, o céo, tudo. conspira para enfeitiçar a phantasia. Não póde trasladar-se para a tela; tem como rival a natureza. Quem lhe chamasse a descripção do Paraizo, não lhe erraria o nome.

Ainda em pujança d'imaginação poucos poderão hombrear com Camões.

Aquillo, porém, que assombra, é a sciencia do poeta.

A deusa Thetis faz uma exposição a Vasco da Gama do systema do mundo, e n'uma altura que quadra perfeitamente a uma entidade divina. As theorias de Ptolomeu, as unicas então seguidas, eram sobejamente familiares ao poeta; porém, a altura em que eram expostas, faziam d'aquelle logar o supplicio dos commentadores. Espiritos cultissimos não podiam defrontar com as difficuldades do logar. A gloria de dissipar as nuvens, que envolviam aquella montanha do saber de Camões, estava reservada para um espirito tão intelligente como modesto, tão despretencioso. como douto. O meu presadissimo collega o ex.mo snr. Augusto Luso da Silva, fez a luz n'aquellas trevas apparentes; e, prestando um serviço relevantissimo ás lettras patrias, deu mais uma vez provas da sua vastissima erudição.

Falta-nos ainda considerar Camões, como soldado. Na sua carreira militar, começou pelo baptismo de sangue pela patria. No rosto inspirado vê-se bem claro o vestigio do honroso ferimento. A milicia portugueza, cuja historia é das mais ricas em feitos gloriosos, tem sobejo motivo para se ufanar de ter tido na sua classe-Luiz de Camões.

Ainda depois de dois seculos terem passado por sobre as suas cinzas, vem de Camões o maior galardão que se tem dado á valentia militar.

Regressando as tropas portuguezas da campanha

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