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«me de Vossa Magestade me foi dado. Este mande «Vossa Magestade se me guarde, sendo justiça, que «não peço favor das leis, senão que não se torçam «<leis em minha destruição.»

Levantou-se discussão no conselho real em Madrid; opinavam uns que se deferisse como pedia o supplicante, e outros que se fizesse o que dizia o vice-rei. As partes contrarias a Miguel de Andrada subornaram as justiças (segundo elle quer deixar entrever), e por fim de contas o rei decidiu que se fizesse ao preso justiça ordinaria, a cabo de cinco mezes de prisão no Limoeiro de Lisboa.

O preso aggravara da injusta prisão perante a meza da consciencia, que era o juizo dos cavalleiros das ordens militares, a que elle pertencia como cavalleiro de Christo. Esse tribunal representou ao vice-rei; ainda sobre isso houve grandes reluctancias e contradicções; afinal, e breve, expediu-se uma portaria da vice-regencia mandando soltar o indiciado. Pode calcular-se pouco mais ou menos quando foi o livramento: Miguel diz que quem despachou o seu feito foi já o marquez de Castello Rodrigo D. Christovam de Moura; este entrou em 1608. Ahi está pois fixada com certa aproximação aquella data.

Como seriam as alegres expansões de uma tal natureza enthusiasta ao ver-se outra vez ao sol de Deus, e livre dos horrores dos carceres do Limoeiro!

E as partes quasi não fallaram mais, diz elle com jubilo sincero- que deviam ter bem visto e sabido não haver na devassa coisa alguma; e elles não tinham outra que dizer contra mim, e por isso esfriaram na accusação, que d'antes faziam acerrima.

Mas o processo continuou, creio, apesar de solto o reo. Este contrariou por negação o libello accusatorio, o que parece tel-o feito cair em contradicção com as confissões a que o obrigaram quando obteve a carta de seguro. Eram usos da rabula do tempo, que Andrade diz foram depois vedados por lei. Emfim, saiu a sentença declarando-o innocente, mandando-lhe dar baixa de culpa, e deixando-o ir em paz solto e livre.

Eis ahi tudo que diz na sua linguagem de ir e vir, no seu estylo de azinhagas e altibaixos, a preciosa Miscellanea, fonte unica genuina que pude encontrar d'esta historia de trevas e lagrimas. Do arrasoado conclue-se pouco, mas conclue-se que houve caso. Entrevê-se na sombra a mulher morta; junto d'ella um homem, a quem a voz publica (muita vez infame) e as justiças indigitam como assassino; mas aquella mulher, nem depoimentos nol-a pintam, nem genealogias nol-a dão a reconhecer; permanece no escuro, vagamente desenhada, vagamente victima, serena e triste como uma Desdemona, sem se queixar, e sem accusar....

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Seja ou não seja a mysteriosa dona uma Ignez de Atouguia, filha de Francisco de Figueiredo Ribeiro, e primeira mulher do cavalleiro Miguel Leitão, o caso que não lhe pude por ora achar ao certo o rasto. Affirma que é ella o nobiliarchista Manço de Lima. O auctor da Miscellanea diz algures: meu sogro é Ribeiro. Pois em Atouguias, em Ribeiros, e em Figuei1Dial. Iv, pag. 80 da edição de 1867.

redos procurei com affinco, e não encontrei a victimada Ignez; encontrei sim um Francisco de Figueiredo Ribeiro, filho de João Vaz Rebello, e successor de um morgado1. Casou elle com D. Margarida de Vasconcellos filha de Francisco Pedrosa Rebello, que era dos Pedrosas do Algarve. Na filiação não vejo Ignez, o que pode ser uma d'aquellas ommissões tão frequentes nos tombos genealogicos, mas vejo Simão Rabello casado com uma filha do mesmo Francisco de Figueiredo; e Miguel Leitão diz algures na Miscellanea: Simão Rabello meu cunhado; isso pois me induz a crer que D. Ignez de Atouguia era filha d'este Francisco de Figueiredo, e que por qualquer motivo a ommittissem. A ser assim, podia Miguel Leitão gabar-se de ter como outro cunhado um dos maiores perversos (a ser verdade o que d'elle está escripto), um dos arruadores mais acabados, de que resam as memorias, o senhor da casa, João de Figueiredo de Vasconcellos, de quem alguma vez terei de fallar, e que n'este momento me levaria longe.

Mas vejamos: o que ha de romance, e o que ha de historia em tudo isto? Não posso destrinçal-o. Confundiu-me primeiramente o tom peremptorio em que o citado escriptor, que era lá visinho do Pedrogam, e por tanto podia ter recolhido tradições oraes, e que além d'isso era laborioso e investigador de documentos, escreve sem mais rebuço:

'Manço de Lima. Rabellos, n.o 251.

D. Ignez de Atouguia, a qual elle matou, e não devia ser por culpa muito averiguada, pois esteve por essa causa preso muitos annos.

Mas por outro lado observo que n'essas poucas palavras ha fel, e ha inexacções. Primeiro que tudo Manço de Lima detesta litterariamente o tagarella da Miscellanea; não perde occasião de dizer que o livro é mau, futil, pessimo, etc. Ás vezes nas naturezas peninsulares ha uns certos enthusiasmos que arrastam, e tiram ás criticas a sua fleugma; por isso desconfio de que o padre se deixasse, sem o saber, dominar de alguma lenda provinciana, de alguma tradição malevola de comarca, ao escrever D. Ignez de Atouguia, a qual elle matou; e noto que um tal nobiliarchista, que só escrevia á vista de testamentos, escripturas, justificações, accordãos, e mais papelada documental, não adduz para aquella tão grave affirmação uma prova unica.

De mais, que significam as phrases Não devia ser por culpa muito averiguada, pois esteve por essa causa preso muitos annos? suppõem a contrario sensu que, se fosse por culpas muito averiguadas da esposa, o marido estaria pouco tempo preso, pois lhe seria como que licito matal-a; o que tudo dá o absurdo. Mas é que não esteve tal preso muitos annos, e sim cinco mezes, segundo o proprio affirma em lettra redonda, e na presença de todos os seus contemporaneos (questão de facto).

A vista de todo o exposto, não me atrevo, como jurado em tal pleito, a affirmar se o bravo cavalleiro

1 Essas são as idéas, e não as palavras textuaes.

de Alcacer-Kibir fez ou não o que um seculo antes fizera o duque D. Jayme de Bragança; não me atrevo; faltam-me provas. Mas tenho em contrario os seguintes indicios:

1.o O tom desassombrado e livre com que elle narra os trabalhos do processo, não se limitando a defender-se, accusando até;

2.- A sua illibação declarada por sentença publica (embora lhę não conheçamos os fundamentos, e os porquês);

3.o O seu segundo e terceiro casamento, que suppõem que entre os parentes e o publico illustrado era reputado fabula o caso do assassinio;

4.- emfim: O ter recommendado em testamento aos herdeiros de D. Ignez suffragios por alma d'ella, o que mostra que mantinha ainda relações com esses affins, e que a defunta merecia ao coração do viuvo o culto da estima, e da saudade.

Descarregue-se pois por ora o cavalleiro do peso maior da culpa, e illibe-se sobretudo a triste morta. Tenha paciencia Manço de Lima; não lhe accuso as intenções, ainda assim; julgo-o precipitado; e se o não foi, queixe-se de si: apresentasse as provas.

Foi durante esta sua primeira viuvez, que se nos deparou, como vimos, n'um dos serões da casa de Nicolau de Altero, o novo pretendente á mão de Brites de Andrade, o primo da casa, a quem, segundo lá apontei, não prejudicou a lenda tenebrosa que pairava sobre o seu nome. Celebrou-se o matrimonio, que não sei quanto tempo durou, e que foi in

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