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Fernão Lopes. Não sei a origem de tão significativa alcunha.

Foi Alvaro Paes, conforme o chronista, um cidadão nobre e rico, chanceller mór d'el-rei D. Pedro 1, e depois d'el-rei D. Fernando. Era padrasto de João das Regras, como segundo marido de Sentil Esteves, mãe do grande legista 2. Possuia casa em Lisboa. Gosava de tal fama e respeito, que nada se decidia na vereação, sem elle ser ouvido. Como era gottoso, na sua propria residencia muita vez recebia os vereadores em sessão.

Não entendo o que podesse haver de commum entre o honrado cidadão e a torre; mas não me parece tambem que se usasse ainda impôr nomes illustres a sitios que nada teem com elles. Se o povo chamou de Alvaro Paes áquelle cubello, é porque teve motivo para isso: ou o chançarel ali morava perto, ou contribuiu de seu bolsinho para a construcção, ou deu o terreno, ou coisa assim 3.

O que é certo é que, juntamente com a visinha porta de Santa Catherina, teve aquella torre a grande honra de pelejar com a vanguarda dos nossos defensores nas guerras da independencia. Fallava recordações nobres aos que passavam -exclama um poeta, a quem sempre interessou a causa dos desvalidos e desamparados;-mas a velha torre de Alvaro Paes foi accommettida, e não por castelhanos".

1 Chron. d'el-rei D. João I.—Cap. xxvIII.

2 Hist. gen.—Tom. xi, pag. 790.

3 Fernão Lopes chama-lhe algures uma vez, no cap. 114 torre de Alvaro Pires, mas creio ser lapso de copia ou de impressão. 4 Castilho. Rev. Univ. citada.

Não foi pelos castelhanos, não; foi pela camara de Lisboa. Os antigos vereadores honraram o chanceller; os de 1835 e 1836 deshonraram-lhe o singelo e unico monumento, que o recordava aos povos.

Que tyranno cego e surdo não é o camartello demolidor! Triste quasi sempre, vandalica muita vez, é a civilisação feita a camartello; em certos casos não ha outra. O que é deveras lamentavel é que na maior parte dos nossos municipios tem avultado de sobra junto ao elemento illustrado, tolerante, e artista, o elemento bande-noire, o mais ridiculamente parvo de todos os elementos administrativos (perdoe-me gabal-o).

E não só a torre; o postigo do Condestavel mereceu tambem sentença de exterminio, em nome de não sei que falsa idéa de embellezamento do sitio. Tudo assim vae. E quando a imprensa grita contra as profanações, as auctoridades riem.

Defronte da portaria de S. Roque (bem defronte, diz Balthazar Telles) edificaram-se nos dias do mesmo padre as nobres casas de D. Henrique de Noronha, e de D. Estevam de Faro, adquiridas depois pelo conde almirante 2; são os restos d'ellas que habita hoje o Diario popular.

No topo da calçada, e com pateo sobre o largo,

1 Chron.-Tom. II, pag. 93.

"Pinho Leal.- Port. ant. e mod.-Tom. IV, pag. 166.

vê-se um resto do palacio dos Nizas, fabrica do seculo xvi ampliada e reconstruida posteriormente. Ahi habitou a familia; e no seculo passado tantos annos residiram lá o primeiro patriarcha de Lisboa D. Thomaz de Almeida, da casa de Avintes, e o seu successor D. José Manuel, da casa da Atalaya, que o povo habituado ás pompas ecclesiasticas d'aquelles prelados, passou a dizer pateo do Patriarcha.

Veiu o terremoto de 1755; o palacio padeceu muito; das alterosas paredes que restavam vimos arrear algumas ha bem poucos annos; e o que lá permanece é um pobre paragrapho mutilado do grande todo. Depois de destruidos em parte, alugavam-se aquelles vastos casarões a varios inquilinos. De dois, pelo menos, sei eu: um foi Francisco Coelho de Figueiredo (que lá falleceu), irmão e editor do poeta dramatico Manuel de Figueiredo; o outro foi, na mesma parte do predio, o alfarrabista Antonio Henriques.

D'esse tal deposito conservo noticia por meu pae, que em pequeno ahi concorria com seus irmãos a comprar livros (de que ainda possuo alguns). Muita vez lhe ouvi descrever os tres avantajados salões onde era a feira da ladra bibliographica. Nada hoje na nossa Lisboa pode dar idéa d'aquelle mar immenso, revolto, acachoado, de volumes truncados de todos os feitios, generos, e idiomas, alastrado pelo chão. Os freguezes andavam á pesca (mas litteralmente á pesca) pelas profundezas do abysmo; desentranhava-se aqui o segundo volume, além o oitavo, acolá o primeiro, e ámanhã ou depois os ou

tros, de alguma obra importante entre milheiros de inutilidades. Encontrava-se, a bem dizer, tudo; o essencial era perseverança. Rebolcavam-se juntos n'uma desordem licenciosa os folios mais graves, com os oitavinhos mais aventureiros; a theologia, com as viagens; a alta sciencia, com a poesia; as odes de Anacreonte com os quartos de Larraga. Se jamais houve republica nas lettras, na calçada do Duque a deveram procurar.

Quem menos idéa tinha do seu haver, me dizia Innocencio, que julgo ter conhecido ainda o alfarrabista, era elle proprio. O homem parecia, mal comparado, como a Sibylla de Cumas: as folhas revôltas do seu antro, nem já tentava pôl-as em ordem. Fiava-se, com uma boa fé sem egual, na probidade dos rabuscadores; nada mais inoffensivo e mais honesto que o bibliómano; as paixões innocentes melhoram a alma. O homemsinho deixava levar por baixo preço aos freguezes o que elle por baixissimo tinha adquirido. Tal era o estado descurioso da capital.

Que diriam a isso os manes errabundos do applicado marquez de Niza, a quem me referi pouco acima, o collector da magnifica livraria d'aquella mesma casa, o hospitaleiro bibliophilo d'aquelle solar!

Por cima justamente das salas do bibliopóla era a platéa do theatrinho novo do Bairro alto (logo fallaremos dos theatros velhos). É hoje o deposito dos trens da Companhia lisbonense de carroagens. Foi obra de Joaquim da Costa, depois de 18121.

1 C. Wolkmar Machado.- Memorias, pag. 227.

Não posso exarar aqui a chronica d'este popular

theatrinho. Remetto o leitor ao Archivo Pittoresco, e tambem ao Diario de Noticias, aos artigos em que o talento do sr. dr. Paulo Midosi compoz com muita verdade um quadro historico cheio de retratos celebres, que muito interessam aos enthusiastas do passado, e com que por tanto fez um bom serviço ás nossas lettras. Oxalá seguissem outros escriptores o mesmo exemplo!1.

Sei que em 1818 havia lá uma companhia hespanhola; que em 29 de setembro de 1821 subio á scena a estreia de Garrett, a sua tragedia Catão; que em janeiro de 1823 ahi esteve uma companhia franceza até 9 de março; em 1827 uma companhia ingleza; oiço mais que por escrupulos da senhora marqueza de Nisa D. Eugenia era desmanchada a sala em 18362; e sei finalmente que hoje ninguem sabe d'estas coisas, que tão de perto interessam as lettras, a arte, os costumes, e em summa: a historia!

'Silva Tullio.- Arch. Pittoresco. Tom. vii, pag. 382.-Midosi.-Serie de artigos publicados em outubro de 1878 no Diario de Noticias, sob o titulo de Os ensaios do Catão.

2 Pinho Leal.-Port. ant. e mod. Tom. iv, pag. 196.

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