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tes da cidade1. A coincidencia é galante: á porta da nova Misericordia em S. Roque ia pois estabelecer-se o tal mercado das boninas, que, hoje principalmente, bem rendoso podia ser. Era bonito, não pegou. Porque não se renova na camara a proposta? que haveria mais proprio do que uma feira de flores em proveito dos pobres, ali, onde se exerce (e tão bem!) a caridade de Vicente de Paulo! ali onde campeia o monumento modesto do Anjo da caridade!

*

Uma das egrejas de que mais gosto em Lisboa, é essa ahi mesmo em frente, é o templo de S. Roque.

Por felicidade respeitou-a o terremoto de 1755. Quem a visitar acompanhado de Balthazar Telles, ha de ver que fieis que não eram as descripções do padre.

O terremoto alluiu na casa professa a portaria, a cimalha e o frontão da egreja, a torre do relogio, e poucas mais officinas 2. A egreja ficou, e teve a fortuna de não ser deturpada em tres seculos pela brocha dos caiadores, nem pelo colherim dos estucadores.

Ha talvez, em certos sitios, doirados de mais, me parece; a talha em pau Brasil ou em cedro é tida por pouco artistica, se não esconde sob uma camada de oiro os seus tons quentes de sépia, que a meu

1 Dil-o Nicolau de Santa Maria.-- Grandezas de Lisboa, pag. 181.

2 Moreira de Mendonça. Historia dos terremotos, pag. 131, e Archivo Pittoresco.-Tom. v, pag. 312.

ver são tão nobres, e tão adequados á ornamentação religiosa. No mais, os acrescentos que successivamente se teem feito á primitiva traça foram dignos d'ella: paineis de Avellar Rebello, de André Reinoso, de Bento Coelho, de Gaspar Dias; telas primaciaes de Vieira Lusitano; azulejos preciosos, dos melhores que tenho encontrado; finalmente uma joia como a celebre capella de S. João, obra de Vanvitelli, e onde não se sabe escolher entre a valia dos quadros de Miguel Angelo, Guido Reni, e Raphael, reproduzidos em mozaico, e a dos candelabros, lampadarios, e columnas, de bronze e porfido, de amethista e lapislazuli; em summa: é tudo aquillo um conjuncto de optimo e finissimo sabor, para quem se deleita com os regalos da arte.

Por este lado merecia a egreja de S. Roque monographia especial; aqui não a pode ter. O conde Raczynski menciona com o seu bom gosto habitual alguns quadros; especialiso os de Rebello, os de Vieira Lusitano, que são da sua primeira maneira, o S. Roque de Gaspar Dias, os da sachristia, para a historia dos trajos, os retratos d'el-rei D. João III e da rainha D. Catherina, que se achavam ainda, haverá dois annos ou tres, por baixo do côro aos lados do guarda vento, e eram de optimo pincel estrangeiro, provavelmente de Antonio Moor; e outros, e outros.

A frontaria sobre o largo é simples e pobre, como era a roupeta. O timpano é ridiculo, renascença de cal e areia! O campanario não apparece; era isso

moda jesuitica; não a sei explicar, mas vejo-a quasi sempre seguida no debuxo dos templos da Companhia.

O adro foi muito maior do que é hoje; occupava talvez um terço da praça ha poucas dezenas de annos. Lá por baixo corria um vasto carneiro de não sei qual confraria, com uns respiradoiros estreitos sob os degraus.

Uma vez... (contou-me isto meu pae, em cuja meninice, creio, se deu este caso) levaram para o carneiro de S. Roque uma mulher que julgavam morta, mas que estava apenas cataleptica. Passados dias, vão a entrar no carneiro com outro novo morador, e que hão de ver? a pobre mulher, que, tendo acordado do ataque, reconhecido nas trevas todo o horror do caso, e conseguido sair do caixão, se arrastára até uma fresta, por onde coava um raio de luz e um bafejo de ar. Fartara-se talvez de chamar os que ella julgava a ouviriam, e depois apagara-se de vez. Ali a encontraram, pallida, embrulhada na mortalha, como quem tiríta de frio, e na postura mais resignada que se pode imaginar, encostada ás mãos, ralada e desfeita de padecer só comsigo...

As festas de S. Roque foram sempre, por antiga tradição, das mais frequentadas e queridas do alto publico de Lisboa. Que o diga com os seus toantes uma cançoneta, cuja linda melodia popular os nossos campanarios não esqueceram, e que remonta aos annos em que era elegantissimo trajo dos nossos franças o lusitano capote de pano com seu cabeção,

toga peninsular de que nem vestigios restam. Cantavam assim as nossas avós dedilhando na viola:

Passarinho trigueiro,
põe-te no ramo;

quando vires que é noite
vem-te chegando.

Toque! toque! toque!
vamos a S. Roque!
vamos ver os peraltas
se têm capote!

Foi a carta regia de 8 de fevereiro de 1768 que, depois de extincta a Companhia, concedeu a casa e egreja á Misericordia de Lisboa; e depois d'isso, aforando-se a grande cerca, se foi retalhando nos predios que hoje formam a calçada da Gloria, e a rua occidental do Passeio. Onde só divagavam de breviario em punho os doutos padres da casa professa, acotovela-se toda Lisboa, a ouvir cada noite o estrondear das fanfarras e dos bailes infantis na esplanada dos Recreios Whittoyne. Onde só penetrava a custo a lua, rutilam as borboletas de gaz e as vistosas filas dos balões de mil côres. Onde só chilreavam em doce paz os passaros mysticos do arvoredo, gorgeiam entre applausos jotas aragonezas, malagueñas e seguidillas andaluzas, os rouxinoes que se chamam a Moriones e a Nadal.

Por todas as circumstancias historicas e artisticas apontadas, deve merecer ao lisboeta genuino singular predilecção o templo de S. Roque. As capellas são um conjuncto de objectos de alto apreço, dignos do melhor museu; o tecto, onde foi cuidadosamente restaurada em 1862 aquella complicada composição monumental, do genero a que os italianos chamam di sotto in sù, é um bom especimen da nossa arte antiga; até as gelosias das tribunas collateraes, coisa já rara hoje, dão um aspecto monastico ao templo, de todo secularisado. Por muitos outros pormenores que ainda não pereceram, que seria impossivel enumerar aqui, mas que saboreia o estudioso lido em livros empoeirados, o penetrar n'aquelle santuario é surprehender quasi intacta a vida antiga da notavel casa professa da Companhia de Jesus.

Ha, quanto a mim, uma desusada serenidade, um repoiso singular n'aquella architectura austera e grande, onde, pela muita largura do templo, de uma só nave e todo desobstruido, dominam as longas paralellas horisontaes, affirmadas ainda, segundo as regras estheticas, pelas series verticaes das varias capellas e prumadas de alvenaria. Sente-se o espirito dominado logo de uma idéa accessivel de ordem, subjugado por não sei que symetria compassada,. fria sem duvida, mas de um indizivel caracter de ascetismo, e de um encanto que nos conchega, se nos não eleva, para a oração. Não ha os raptos ideaes e apaixonados da ogiva, mas ha uma serena confiança, que restaura.

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