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Mora ali o pensamento classico da renascença, mui succintamente expresso, sem marmores fastuosos, sem archaismos pagãos, e sem os devaneios italianos dos Borrominis, que sempre me parecem fiorituras de mau gosto enroladas na singeleza de uma melopêa religiosa.

Na sobriedade da arte antiga ha um eloquente silencio, pelo meio do qual se ouve só o que se deve ouvir. Nas variações da arte moderna decadente ha como uma confusão aspera de vozes gárrulas que se crusam e neutralisam.

Artisticamente a egreja de S. Roque estava de todo no caracter da casa a que pertencia. Filippe Tercio, o architecto, revelou bem a sua intelligencia, e a sua sagacidade. Impera ali o desapego das grandezas, a lucidez da consciencia, e a linha recta e resignada da disciplina claustral.

CAPITULO XIV

Estado actual do palacio de Nicolau de Altero de Andrade.— Sua reconstrucção no principio do seculo xviii.-Investigações genealogicas frustradas.-Dividas que oneraram o palacio. Seus actuaes donos.

Vamos agora outra vez dar uma vista de olhos ao que, segundo indiquei nos primeiros capitulos, foi solar da quinta dos Alteros. É a casa que hoje pertence ao sr. Delphim Guedes, vice-inspector da Academia Real de Bellas Artes. Com o fino trato que o distingue, teve o sr. Guedes a bondade de me facultar os titulos da sua propriedade, e foi por elles principalmente que pude reconstruir as noticias que passo a offerecer ao publico.

Fica o palacio defronte da calçada da Gloria, na rua de S. Pedro de Alcantara, e fórma elle só o quarteirão emmoldurado por essa rua e pelas da Boa Hora, dos Calafates, e do Guarda-mór. Já se vê que é uma vasta mole, imponente pela sua arrogante extensão; é tambem, no seu tanto, pela nobreza das

linhas, especimen bem conservado da architectura particular lisbonense do seculo XVIII no seu principio.

Os nossos palacios não teem, por via de regra, o porte garboso de muitos lá de fóra, os dos nobres da Italia, por exemplo, onde a tradição das villas de Mecenas, Lucullos e Plinios, se perpetua. Falta-lhes a linha, a ousadia, o imprevisto, a harmoniosa consonancia da dessymetria, o calculo das massas equilibradas com o pormenor, todo aquelle conjuncto sabio, que faz de muitos palacios de Roma, de Florença, e de Milão obras de verdadeiro cunho. Nunca se deu grande apreço por cá aos primores da ornamentação da habitação particular; são raras as Berjoeiras; somos pouco artistas em geral, e depois não temos a educação, que suppre a indole.

Este é uma reconstrucção dos primeiros annos d'el-rei D. João v; na seccura da apparencia bem o indica. Pertencia então a avoengos dos srs. condes de Lumiares. O que o reedificou foi o morgado Manuel Ignacio da Cunha e Menezes, ou antes sua mãe e tutora D. Leonor Thomasia de Tavora, viuva de Tristão Antonio da Cunha, filho de Manuel da Cunha e de D. Francisca de Albuquerque.

Bem mostra esta senhora, D. Leonor, ter sido uma zelosa administradora dos bens do filho menor que lhe ficou; viu as suas casas nobres sitas ao relogio de S. Roque, onde residiam, carecerem de arranjo e concerto; não tinha de contado somma disponivel; pois por escriptura de 3 de fevereiro de 1703 tomou-a de emprestimo, e logo depois, representada por seu procurador e capellão o padre José

da Silva Nogueira, celebrou contracto com o mestre pedreiro Manuel da Silva, obrigando-se este a determinadas condições, e a tutora a entregar-lhe annualmente 600 000 réis até final pagamento.

Fez-se a obra, e ficou bem feita, porque resistiu ao terremoto, padecendo comtudo alguma coisa1.

Ha dezenas de annos que a familia Lumiares não reside ali. Aquillo por dentro é uma grande colmeia de aluguel para muitos inquilinos, com escadas varias sobre os quatro lados; a antiga entrada principal, com um atrio vasto, está toda aproveitada e alugada em lojas.

Como o palacio viesse a pertencer no fim do seculo xvii ao morgadinho Manuel Ignacio, não o direi ao certo; mas visto que esse ponto nos interessa mais que muito, por se referir á casa solar do Bairro alto, e antiga residencia da familia Andrade, verei se posso dar a algum curioso mais feliz do que eu o fio que me guiou nas conjecturas.

Era Manuel Ignacio senhor de dois morgados, que eu saiba: um denominava-se das Cachoeiras; fora fundado por Luiz Ribeiro, e sua mulher Izabel Pacheca, com acrescentamentos de Bernardim Ribeiro Pacheco; a filha herdeira de Bernardim casou com Luiz da Cunha senhor do morgado de Payo Pires, juntando-se assim os dois vinculos 2; o outro morgadio fôra instituido por Fernão Alvares de Andrade

1 Mor. de Mend. Hist. dos terrem., pag. 134.

2 Hist. gen. da C. R., tom. x, pag. 622.

(de quem tratei no capitulo xi com acrescentamento de seu filho Alvaro Pires de Andrade.

Ora evidentemente a esta linha Andrade pertencia o palacio do relogio de S. Roque; o que não percebo é como esta posse derivou do ramo da geração de Nicolau de Altero, para o outro ramo da Annunciada, Andrades tambem, do mesmo tronco sim, mas menos proximos que outros. É ponto que o registo dos vinculos podia esclarecer.

Manuel Ignacio da Cunha casou com D. Josepha de Menezes, filha de D. José de Menezes, e tiveram José Felix da Cunha. D'este foi filho outro Manuel Ignacio, que veiu a ser conde de Lumiares pelo seu casamento com a terceira condessa herdeira de Lumiares, senhora do morgado do Carneiro.

Como quer que fosse, a casa de S. Roque foi onerada ha mais de um seculo com um grave compromisso, de que nunca se viu livre, em quanto não foi allodial.

O bisavô do actual sr. conde tomou de emprestimo a juros á Santa Casa da Misericordia, por escripturas de 25 de janeiro e 12 de maio de 1754, e de 31 de outubro de 1755 (na vespera do terremo to!) uma avultada somma de mil cruzados. Para pagamento de juros e amortisação foram em 27 de julho de 1779 dados pelo dito senhor os rendimentos d'este palacio. Por fallecimento d'elle os filhos responderam nobremente por todos os encargos paternos, que por motivos independentes da vontade do honrado mutuario se não tinham solvido. O pri

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