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ser para elle a celebre casa dos bicos na Ribeira velha a expressão proverbial da elegancia e do requinte, já a egreja e a torre da Trindade, mais as ogivas e botaréos do Carmo, eram até ali aos seus olhos o supra-summo da arte e do poderio humano.

Pois tudo se perde, lisboeta amigo! tudo; até a casa dos bicos. Pois tudo cae, Santo Deus! tudo, tudo; até o Carmo, e a Trindade.

CAPITULO XVI

Continúa a digressão.-A porta de Santa Catherina.- Descripção d'ella. - Sua demolição em 1702.-Os elegantes da Casa havaneza nem suspeitam o que tudo aquillo foi.- A ermidinha de Santo Antonio.--Transformação d'essa ermida na egreja do Loreto.-O incendio de 1651.-Novas obras. -Um documento inedito.--A egreja nova.-Esculturas e pinturas.-A estanqueira do Loreto.

Poderia continuar a investigar minuciosamente a origem de muitas outras casas religiosas, que por estes contornos se foram levantando. Não o farei. Dediquei mais espaço á Trindade por ser a Trindade, por ser uma das casas mais antigas e de mais fama da nossa Lisboa, por se achar intimamente ligada com a historia do cerco, de que folheámos algumas paginas no decurso d'estas memorias.

Esbocei n'um dos capitulos primeiros a porta fortalezada de Santa Catherina, que atalaiava, toda arrogante e soberba, com quatro cubellos ameiados, o sitio onde hoje se abre o largo das duas Egrejas.

Era um monumento historico e militar aquella porta; era por assim dizer o fecho da grande cinta; devia ter merecido alguma commiseração aos demolidores; mas não mereceu: arrazaram-n'a por inutil no anno de 1702, como se atira para uns desvãos um arnez de batalha. Não lhe valeram os seus trezentos e quasi quarenta annos, perante a intolerancia já tradicional dos nossos municipios. Foi isso durante a gerencia de um activo presidente do senado da camara, o terceiro conde de Aveiras, João da Silva Tello e Menezes, de quem diz um escriptor, ter feito na cidade obras notaveis que mereceram applauso universal 1.

Na face oriental da demolida porta existia a imagem de Santa Catherina; e na face do poente a de Nossa Senhora do Loreto; ambas ellas, toscas estatuetas de pedra lioz, se acham na frontaria da egreja da Encarnação; não as julgo de grande antiguidade; provavelmente do seculo XVII. Por fóra d'esta mesma porta, e um pouco abaixo para a banda do mar, lia-se uma inscripção latina egual ás que se liam nas portas da Cruz e de Santo Antão, composta pelo ministro Antonio de Sousa de Macedo, de ordem d'el-rei D. João Iv; era uma allusão ao preito de vassalagem votiva tributada pelo mesmo monarcha á Senhora da Conceição, padroeira do reino 2.

Era esta porta em tudo semelhante á porta da Cruz. As columnas que a enfeitavam foram apro

1 Hist.

gen. da C. R. Tom v, pag. 332.
Tral-a frei Apollinario na Dem. hist., pag. 195.

veitadas em 1702 na entrada principal do açougue publico, situado no Terreiro do Paço, e lá existiam em 1750, e depois 1.

O sitio exacto em que ella se achava corria pelo centro do actual largo das duas Egrejas, na direcção norte-sul, desde a Maison Damien até á antiga casa Huguet, hoje das machinas Singer de cos

tura.

Mas o que é certo é que ninguem, ao conversar á tarde socegadamente nos grupos da Casa havaneza, ao flanar nos asphaltos do passeio pelo braço de algum amigo, ao comprimentar attencioso as elegantes que passam nos seus coupés, ao jantar no restaurante Sousa ou no hotel Alliança, ao atravessar para uma primeira representação no Gymnasio ou na Trindade, ao presencear, emfim, a vida que se condensa ali, n'aquelle ponto parisiense de Lisboa, ninguem já se lembra da porta sombria e guerreira de Santa Catherina, que tanto pelejou pela nossa independencia. É partilha dos mortos o esque

cimento.

Bem sei que tudo melhorou consideravelmente; bem sei; bem vejo que, em vez dos raros nichos allumiados apenas pelos tristes lampadarios da devoção, rutila á noite o gaz e a luz electrica; bem vejo que, em vez de uns bastiões altaneiros e enrugados que obstruiam o transito, se alastra um largo desafogado e commodo, orlado de lojas riquissimas; bem vejo que, em vez das simalhas negras de uma portada já inutil e anachronica, d'onde pendiam não

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raro os quartos sangrentos dos justiçados1, campeiam as nitidas frontarias de duas egrejas de marmore e jaspe; bem vejo que, em vez da solidão e das trevas, tão propicias aos frequentes assaltos nocturnos dos rufiães, ha os pregões dos jornaes, o rodar dos caleches e tilburys, o encontro de bons amigos, o bulicio cidadão, que é uma companhia tão apreciavel. Bem sei tudo isso; e tenho pena, apesar de tudo, de que não conservassem as proporções e a feição exacta do destruido monumento, de que por gratidão o não assignalassem com uma singela memoria, e de que tudo tenda a obliterar as recordações que enchameiam n'uma paragem como esta, illustre entre todas. O carro triumphal do progresso tem direito a passar, mas não tem direito a esmagar e vilipendiar.

Se no seculo xv examinassemos este fragmento da muralha d'el-rei D. Fernando, notariamos que para a banda norte-occidental da porta existia uma muito antiga ermida de Santo Antonio. É raro o ponto onde se não ache pelas chronicas monasticas o vestigio de capellinhas a povoarem os ermos em volta dos centros grandes. Foi esta ermida escolhida para parochia pelos italianos residentes em Lisboa, em 1518, no pontificado de Leão x, trocando-se comtudo a invocação do orago; e Antonio de Bulhões, o portuguezissimo thaumaturgo que Padua nos rou

1 Dem. hist. citada, pag. 197.
2 Miscell. Dial. xvii, pag. 403.

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