tana, e uns curiosos quadros em madeira, uma especie de mosaico, offerecidos em 1822; e vi os tambores da antiga companhia de italianos, que, segundo um compromisso, auxiliava as guardas de policia portugueza, do mesmo modo que o faziam os homens das outras nações domiciliarios em Lisboa. Existem no archivo as eleições para capitão e alferes, do seculo XVII, até 1729 (que foi o mais moderno anno a que cheguei). Conserva-se tambem a bandeira da companhia, que não vi, mas que o sr. prior me disse ter por inscripção Terra tuta bonis, infesta ou infensa malis (se me não falha a memoria). Era um lembrete rhetorico aos ladrões latinistas; os que o não fossem deviam contentar-se com a rude eloquencia do que Azurara chamava provar o sabor do ferro frio. Não posso sair da egreja do Loreto, sem mencionar a falladissima estanqueira, que tinha loja pegada com o templo, e a quem coube a honra de inspiradora de Bocage. Era hedionda-diz um investigador-com uma interminavel cara, e um descompassado nariz, que ficou historico, e deu mais que fazer aos poetas de anagrammas e epigrammas, que o nariz do padre Genest nos ultimos tempos de Luiz XIV 1. Depois de ter accendido o rastilho de mil decimas facetas, e ter sido uma leoa no seu genero, aca 1 Castilho (José Feliciano).-Biographia de Bocage. Tom. II, pag. 234. bou miseravelmente, ralada de privações e fome, a triste Helena, victima das chufas insolentes dos desalmados peraltas litteratos. Il neige, il neige, et là, devant l'église, Sous ses haillons où s'engouffre la bise, Ia por fim sentar-se, muito triste, n'um mocho ao Calhariz, vivendo de esmolas, e na sua resignação silenciosa inspirando (quem sabe?) aos antigos rapazes travessos o remorso das más acções. CAPITULO XVII mo. Vista de olhos á proxima egreja da Encarnação. A condessa de Pontével.-De Brunelleschi até Borromini vae um abys.-Denuncia-se ao leitor uma joia artistica.—A Madonna de Machado de Castro.-Guerras de sacristia.-As Madonnas da arte antiga.-O palacio dos Marialvas, e os casebres do Loreto. Basta do Loreto, amigo leitor; basta. Volta-te para o meio dia, e contempla comigo a Encarnação. Não é para te dizer que foi sua fundadora no fim do seculo XVII uma dama da rainha D. Luiza de Gusmão, e da rainha D. Catherina de Inglaterra, a viuva condessa de Pontével, D. Elvira; isso t'o dirá muito melhor o padre Carvalho. Não é tambem para as bellezas architectonicas que chamo os teus olhares; a fallar a verdade sou quasi hospede em tão ingremes materias. Creio porém que pouco teriamos que admirar n'essa frontaria, de proporções elegantes, sim, mas quanto a mim vulgares. Parecem-me (talvez seja heresia) parecem-me todas o mesmo as egrejas neo-italianas da architectura borrominesca; não me tocam; ha n'ellas uma em phase balofa, e umas falsas rhetoricas, que destoam do ideal que formo do redil christão. Não sou dos que dizem que o unico templo catholico é o ogival, à vitreaux coloriés, à longs arceaux pointus; não vou tão longe, mas confesso que o prefiro quasi sempre. Bem sei que ha templos modernos no estylo romanisado dos Brunelleschis, dos Bramantes, dos Migueis Angelos, que são admiraveis como idéa, e como realisação. Cito apenas o templosinho circular de S. Pedro em Montorio, em Roma, e S. Pedro do Vaticano, aquelle poema giganteu de sabia estructura, que, se á primeira nos subjuga e nos não commove, depois de analysado e meditado nos assombra como um portento de genio sobrenatural. São as grandes excepções. Mas confesso que a decadencia d'esse genero é aos meus olhos profanos muito mais pobre do que a decadencia do estylo gothico: o puro ogival ao precipitar-se deu as concepções hybridas mas inspiradas do estylo florído, e do flammejante, e cá as do chamado manuelino; o classico christão ao declinar produziu o borrominesco, e d'este brotou o rocócó. Esse quanto a mim poderá ser como um soneto bem trocadilhado a tal ou tal santo, uma decima-madrigal-Pompadour perfeitamente rimada a tal ou tal personagem, mas nem mesmo quando se eleva nos eleva a nós; e o bom classico, e o bom ogival, elevam-nos sempre. Quem pois olhar para esta fachada da Encarnação, encontra uma obra proporcionada, bonita, rica, se quizerem, na nossa nitidissima pedra de Lisboa que maravilha os estrangeiros, mas nada mais encontrará. Acho-lhe, n'aquelle seu pyramidar convencional, um indefinivel garridismo, um salpicado de massas escuras, que me desagrada. E digo-o por esta, e por outras muitas egrejas: ha mau, e ha rocócó sempre que a fórma se burne só pela fórma, sempre que o architecto perde de vista o seu pensamento inicial, para só se embrenhar, a sangue frio, no delirio voluptuoso do pormenor, sempre (isto custa a dizer hoje) sempre que a innovação dos filhos degenerados da arte, cogumelos da grande arvore caída chamada Miguel Angelo, vem tentar substituir com entablamentos arbitrarios, com proporções arbitrarias, com columnas multiformes, com avellorios ficticios, com laçarias de grinaldinhas, com platibandas grotescas, com o abuso das curvas, com almofadas polygonaes immotivadas, com todo o luxo doentio das imaginações caducas, as fórmas puras, calculadas, severas, motivadissimas, da arte antiga. É desenganar: aquillo lá é grande, é grandioso mesmo quando não é grande, é facil, é uno, é simples. Commove; domina. Isto... não. A quem entrar na egreja da Encarnação, o que desejo é denunciar uma joia bem preciosa: é a estatua do orago, esculpida n'um troço de cedro por Joaquim Machado de Castro; niente meno. No altar mal pode apreciar-se, porque muita vez estará revestida, e, quando o não esteja, acha-se tão rodea |