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CAPITULO XVIII

A rua do Alecrim.-Ermida de Nossa Senhora do Alecrim. -Sua fundação e historia.-Aproxima-se aos olhos do leitor a ermida dos Fieis de Deus e historia-se a sua lenda.Visita á linda egreja das Chagas.-Recordações litterarias. -Catherina de Ataíde e Luiz de Camões. Os sinos das Chagas.-Um poeta doido engaiolado n'um campanario.— O recolhimento das convertidas.-O alto de Belver e a egreja de Santa Catherina.—Pedido á camara municipal em nome das bonnes d'enfants e de outros personagens.

Deixando as duas egrejas e o palacio varrido, e descendo para o mar pela nossa formosa rua do Alecrim, ou, como se dizia logo depois do terremoto, rua das duas Egrejas, ou, como se diria em 1730 e tantos, rua da Encarnação, ou, como diriam outros então e antes, rua do Conde (que era o de Vimioso, cujo palacio ficava logo abaixo do actual palacio Farrobo), encontrava-se do lado direito, um pouco ao sul do sitio que é hoje a esquina nordeste do largo do Quintella, uma ermida, que tem historia in

teressante.

A topographia do logar era assim: na linha que descia da esquina da nossa rua da Horta secca para

o mar levantava-se uma propriedade nobre, cujos dois andares deitavam sobre a rua do Conde. Depois havia muro e seguia-se a ermida, formando esquina para a chamada travessa de Braz da Costa, que ia desembocar na rua das Flores; e esta, seguindo a mesma directriz que hoje segue, ia acabar, como agora, na rua da Horta secca. Todo este quarteirão só comprehendia, creio, a casa nobre, a sua ermida, e um logradoiro ou quintalão, onde houvera um poço publico chamado do Chapuz.

É natural o desejo de se saber a origem da ermida; ella aqui vae como a estudei.

Era no seculo xvII D. Anna de Vilhena uma senhora illustre da ilha de S. Miguel, filha de Francisco Ramalho de Queiroz e de Leonor Dias Neto', e mulher do desembargador Alvaro Lopes Moniz.

Quando veiu para Lisboa, trouxe D. Anna comsigo uma muito devota imagem da Senhora, que levou para os Olivaes, onde ficou habitando. Pensava, e já de muito, em erigir uma capella á Virgem, mas não atinava com invocação nova que lhe desse. Uma vez, estando D. Anna em oração na freguezia, andava por ali a trastejar um filho pequenino, que ella levara comsigo; e de repente, eis que sem mais nem mais a creança começa por brinco a pedir esmola aos circumstantes, como via pedirem os sacristães, mas para uma Senhora, de cujo appellido não resava até então a lithurgia: Nossa Senhora do Alecrim. «Esmola para Nossa Senhora do Alecrim!» Ouve a mãe aquelle nome, proferido espontanea

1D. Tivisco. Theatro geneal.—Arvore Castello Branco

mente por labios innocentissimos; sobresalta-se sem saber porquê; ao mesmo tempo acha-lhe immensa graça;

a voz da infancia eccos no Empyrio dá;

e tem como certo ser aquelle um sobrenatural aviso com que a illumina o ceo1.

Deliciosas crenças dos corações puros! a feliz mãe abraçou o filho pequenino, e metteu hombros á empreza.

Compraram logo, ella e seu marido, por escriptura de 9 de novembro de 1624, um terreno em Lisboa a D. Anna de Mendonça; custou 100 000 réis, ou 3275000 réis da moeda actual. Esta vendedora tinha havido o terreno por herança de sua avó D. Brites de Mendonça, a cujo marido, Antonio da Silveira, a camara o tinha aforado por escriptura de 5 de julho de 1535 por 50 réis annuaes 2. Obtido o chão, enviuvou D. Anna de Vilhena, casando segunda vez com Christovão Soares de Albergaria, desembargador da casa da supplicação, e vereador da camara de Lisboa. Quanto a este sujeito ha divergencia de opiniões; não tive meio, nem necessidade, de esclarecer o caso, que importa pouco; mas dizem uns3 que elle falleceu no 1.o de dezembro de

1 Santuario Mariano. Tom. I, pag. 329.

2 Informações extraídas a pedido do auctor pelo sr. Ferreira Chaves dos livros de aforamentos da camara municipal de Lisboa. Novamente agradeço a este sympathico amigo todo o trabalho que teve por minha causa, e a boa vontade com que sempre me auxiliou.

3 Por exemplo Agostinho de Santa Maria no Santuario.

1640; e outros que não foi elle mas seu filho Francisco Soares de Albergaria, corregedor do crime.

Foi já depois d'este segundo casamento de D. Anna, que se deu principio ás obras; mas tendo sido isso sem licença da camara, esta as mandou embargar. Em 18 de maio de 1628 deu a mesma camara a licença indispensavel; e em 6 de junho se passou provisão regia permittindo definitivamente a edificação, em conformidade com os despachos dos vereadores, e parecer do respectivo syndico.

Não sei se houve novo motivo que paralizasse os pedreiros; mas, segundo o Santuario, mais de treze annos depois é que se dava por concluida a empresa, com grande gosto da fundadora; e tanto gosto, que instituindo morgado de seus bens lhe deu como cabeça a nova ermidinha da Senhora do Alecrim.

Pelo casamento da neta da fundadora, que se chamou D. Izabel Soares de Albergaria, passou o morgado á varonia dos Sousas Castellos Brancos (Curutellos), senhores do Guardão, e em 1735 pertencia a Pedro de Sousa Castello Branco. Este fez no juizo do tombo da camara uma justificação de lhe pertencerem as casas e ermida, pelas ter herdado de seu pae José de Sousa Castello Branco, marido da herdeira dos instituidores do vinculo. Os instituidores achavam-se sepultados na ermida, como ainda ao tempo do terremoto se via das inscripções tumulares 2.

1 Por exemplo D. Tivisco.

2 Informações do sr. Chaves, do Santuario, dos Nobiliarios, da Hist. gen. etc.

A ermida do Alecrim, parochial temporaria do Loreto e da Encarnação nos impedimentos das matrizes1 (como apontei no logar opportuno), teve a gloria de impôr a sua denominação á grande rua que descia ao longo do muro, prolongada sobre dois arcos até ao Tejo pelo marquez de Pombal; depois desappareceu inteiramente na reconstrucção delineada por Eugenio dos Santos de Carvalho.

Bem fadada e mal lograda. Pouco durou a piedosa fundação de D. Anna de Vilhena. Deixei-lhe ao menos o epitaphio assignalado n'este livro, que, a bem dizer, é um vasto cemiterio.

Se a ermida do Alecrim teve por fundadora uma boa mãe, inspirada pela veleidade innocente de uma creança nobre, muito perto, mais para o poente, existia outra fundação, que se ligava com os pobresinhos plebeus da antiga cidade. Vamos a visital-a; é a ermida dos Fieis de Deus.

Nos principios do seculo xvi tudo por ali eram campos a perder de vista, olivaes, matto, e terras de pão. Vivia no sitio da actual ermida um pobre ermitão, que tinha um singular encargo: era elle só por si o asylo de infancia desvalida, ou antes: a creche da era de quinhentos: recolhia no seu albergue de colmo todos os meninos que encontrava extraviados de seus paes, e mantinha-os em quanto lh'os não iam reclamar. Dil-o o auctor do Santuario Mariano.

1 Santuario Mariano. Tom. 1, pag. 330.

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