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todo ao aprisco as ovelhas desgarradas, e muitas vezes se conseguiu que as convertidas, regeneradas pela indulgencia maternal da religião, se tornassem verdadeiros modelos, chegando não raro a casar nas nossas conquistas ultramarinas1.

O terremoto arruinou, e o novo plano transformou inteiramente aquella paragem. Dava para o sul, sobre a Horta secca, a frontaria da egreja do recolhimento.

O monte fronteiro ás Chagas, para a parte do poente, estava mesmo a chamar por outro templo; ahi eram os altos de Belver 2, ou da Boa Vista, assim denominados pela sua alegre perspectiva de ter

ras e mar.

Em chãos doados gratuitamente, como vimos acima, por herdeiros da rica familia de Bartholomeu de Andrade, edificou-se em 1557, segundo J. B. de Castro, uma egreja a que a rainha fundadora, a senhora D. Catherina, quiz que se pozesse o nome da sua santa padroeira, Catherina do Monte Sinai. Era fabrica de tres naves, elevada sobre columnas, e a que um contemporaneo não duvida chamar magnifica na grandeza, e primorosa no ornato3.

O nome antigo do sitio ainda o conservaram, quando acertadamente foi chrismada ha bem poucos annos a rua do Lambaz em rua de Belver. Do

1 Carvalho. Chorog. Tom. II, pag. 477.

2 Idem., pag. 489.

3 O informador do padre Luiz Cardoso. Vi isto na parte inedita do Diccionario conservada na Torre do Tombo.

primitivo templo nada resta. Ainda ali vimos todos, até 1860 ou 61, uma egreja velha derrocada pelo terremoto grande, e habitada só de mochos e corujas; hoje substituiu-a a elegante morada do sr. Collares, precedida de um jardim gradeado, e ornado de estatuas e candieiros de ferro fundido.

Foi uma parte do morro de Santa Catherina que se subverteu, em julho de 1597. De tanto destroço nada resta n’aquelle sitio pacifico e sereno, onde as moradas ricas e grandes dão á calçada uma agradavel apparencia. O que é indispensavel é que os nossos municipios, que tão raramente apreciam a importancia vivificante do bello entresachado no util, se lembrem de impedir sempre que a orla meridional do alto de Santa Catherina se obstrua de novas construcções burguezas. Ajardinem á ingleza toda a vertente, com arbustos e relva. Aquillo é um respiradoiro necessario; é uma sacada aberta aos bairros proximos. Vae-se ali ha seculos tomar o ar marinho, e ver nas tardes de outomno a destroçada panoplia multiclor do sol poente, quando elle se recolhe ao seu camarim nocturno. Vamos d'ali contemplar a linha sinuosa dos oiteiros de Caparica, e espraiar olhos no ambito do nosso golpho napolitano do Barreiro e Seixal, semeado de velas brancas; observar se chegou o paquete, ou se a esquadra ingleza ou a prussiana fundeou em linha e com o garbo costumado; espreitar no Aterro, lá em baixo, as carruagens e os americanos. Para ali iam encontrar-se os dois velhos da anecdota, que esta

vam toda uma tarde calados em frente um do outro a sorver pitadas de simonte,

Je ne lui parlais pas, il ne me disait rien,
Ainsi se termina ce superbe entretien ;

e que se despediam sempre com a recommendação mutua de «Venha ámanhã mais cedo para conversarmos». Emfim, as amas bonnes d'enfants n'aquelles bancos é que vão encontrar os municipaes dos seus devaneios. Pese bem o senado de Lisboa todas estas considerações momentosas, e nunca permitta que o dito popular de ver navios no alto de Santa Catherina venha a tornar-se um quebra-cabeças para os archeologos da era de 4000.

CAPITULO XIX

A rua da Cruz de Pau.- Pára-se no largo do Calhariz e medita-se no que é a proxima rua do Almada.—El-rei D. Affonso v e a sua côrte. - Um esquisso para quadro historico. -A Alfarrobeira.

Quem sae do alto de Santa Catherina e toma pela rua da Cruz de pau, a que deu nome uma enorme cruz, que d'aquelle cabeço servia de baliza aos mareantes até fóra da barra, acha se a poucos passos andados no Calhariz; encontra na esquina da esquerda a casa onde mora D. Antonio da Costa, e onde, desde dezembro de 1863, todas as obras d'aquelle grande engenho teem sido escriptas; e na esquina da direita o palacio que foi dos marquezes de Vallada, hoje renovado por seu dono o sr. Torres, digno par do reino.

Ora este palacio, sobre cujo portal campeavam, ha poucos annos ainda, as armas dos Menezes de Tarouca, e as dos Castros de treze arruelas, tem a fachada occidental para a mencionada rua da Cruz

de Pau, e para a do Almada, em que esta se bifurca em angulo muito agudo. Ao escrever n'este momento esse appellido illustre de Almada, a minha penna estremeceu involuntariamente; e sabe o leitor porquê? e quer sabel-o? Não adivinha o que um tal nome diz; nenhum lisboeta, ao pronunciar hoje com indifferença o letreiro d'essa viella obscura, suspeita sequer que está evocando das sombras da historia um dos mais completos e perfeitos cavalleiros, que jamais honraram o brio portuguez: nada menos do que o grande Alvaro Vaz de Almada.

Pois é tal qual. Trata-se d'elle; d'elle, e não de

outro.

Ladrava descomposta e atrevidissima a intriga e a traição cortezã, nos paços de el-rei D. Affonso v, contra um homem cujo crime era ser grande, era ser popular, era ser querido, era ser leal. O perseguido era o tio do soberano, um dos da cohorte dos filhos de Filippa de Lencastre, o legendario, o liberal D. Pedro da Alfarrobeira.

Esporeado da veleidade do mando, e adulado pelo duque de Bragança e pelo conde de Ourem, entendeu o juvenil monarcha arrancar das mãos do regente, a quem devia tudo, o sceptro que elle honrava sustendo-lh'o, e resguardando-lh'o na sua menoridade. Demittiu logo o regente, e do melhor grado, a sua realeza interina; seguiram-se ainda assim as differenças que todos sabem, porque os embustes recresceram, e sobre o reino começou a acastellar-se o negrume da tormenta.

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