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Pateo do conde de Soure! e a um lado um cunhal de pedras lavradas; e ao outro a portinha carunchosa de um pardieiro; e acolá umas janellas de ricas ombreiras; e além os restos de uma escadaria, que sentiu os chapins das condessas; e por sobre tudo a mesquinhez e a miseria! é um manto de farrapos a cobrir um fragmento de tremó á Luiz xv.

Aquillo hoje nada significa; não passa de uma agglomeração cahotica e semsabor de casitas pobres, nascidas como cogumelos na carcassa derrocada de uns paços senhoriaes. O presente nada é; mas que brilhante não foi o passado! 1

Ali se erguia um sumptuoso palacio dos condes =de Soure. Os condes de Soure são Costas, ramo destacado do tronco da casa dos do armeiro mór; este é hoje representado pelos condes de Mesquitella; o ramo Soure anda, por femea, na casa do Redondo.

O primeiro conde, D. João da Costa, creado em 1652, foi homem muito notavel, e bem assim seu neto o terceiro conde; juntaram a pericia nas armas e o valor marcial ao amor entranhado ás lettras e sciencias. Não sei em que tempo fizeram casa; o pouco que vemos deve ser do seculo XVII; no meio d'esse seculo achava-se a residencia em todo o esplendor, e, segundo deprehendo de uma narração do

1Não sei se se chamava ali algures a Cordoaria no seculo XVII, mas suspeito que sim, e que havia ahi um largo qualquer, se entendo umas phrases do Portugal Restaurado, tom. II, pag. 17. Fica esse problema para quem m'o souber resolver. Pelo sitio onde é o Thesouro velho era a Cordoaria nova; seria no Bairro alto a Cordoaria velha?

Portugal restaurado, habitado pelos proprietarios o conde D. João, e sua mulher a condessa D. Francisca de Noronha, que era Villa-Verde. Por signal que uma vez, em 1657, ia ali custando cara ao conde de Soure a sua dedicação ao serviço do estado. Attentaram-lhe contra os dias os seus emulos da côrte. O caso foi assim:

Recolhia elle a casa, de volta do paço, onde estivera conferenciando com a rainha D. Luiza sobre negocios politicos; eram umas nove horas da noite. la de carroagem, apenas com um creado fiel, que lhe servia de arrimo ao apear-se e ao ter de caminhar, achacado como era de gotta nos pés. Parou a carroagem, veiu o criado á portinhola, e inclinou-se o conde para elle, a fim de lhe dar uns dinheiros, que, por signal, se haviam de levar a um soldado pobre seu protegido.

Pelo escuro da noite não foram vistos dois embuçados a cavallo, que chegaram, e á queima roupa desfecharam dois bacamartes na direcção da carroagem, fugindo logo logo a todo o galope. As balas atravessaram, sem ferirem o conde, pela posição muito curva e retraída em que elle por acaso tinha

o tronco.

Ao estrondo, e na imminencia do risco, esqueceram-lhe os seus achaques, e correu como poude, de espada em punho, no encalço dos fugitivos; correu pouco, porque ninguem soube dizer a direcção que elles tomaram. Juntou-se gente, vieram luzes, houve alarido e commentarios; o conde recolheu tranquillo ao palacio; mas todo o serão foi um affluir de visitas para lá, porque, não se sabe como, a noticia pro

pagara-se a voar. No dia seguinte a propria rainha ordenou grandes diligencias, que ficaram infructiferas, para se alcançarem os rufiães.

As causas de tão estranho assalto a um cidadão illustre, rivalidades por causa do governo das armas do Além Tejo, não vem para aqui, mas conta-as a quem o consultar o noticioso Ericeira'.

Não foram só os Soures que moraram no palacio do Moinho de vento. Aquella casa, hoje morta, foi até habitação temporaria da rainha D. Catherina de Inglaterra, infanta portugueza, a mesma senhora de quem o meu amigo e illustrado academico o sr. Silva Tullio foi tão consciencioso quanto elegante chronista 2.

Desgostosa da côrte ingleza a rainha viuva, e muito saudosa do seu Portugal, voltou á patria, como todos sabem, em tempo de seu irmão el-rei D. Pedro 11, em 1693. Primeiro estabeleceu-se nos paços suburbanos do Calvario, preparados para tal recepção. Passado algum tempo mudou-se para o palacio dos condes do Redondo a Santa Martha; ahi parece não se ter dado bem, porque passou para o dos condes de Soure; ainda não ficou a seu commodo, porque se transportou pouco depois para o dos condes de Aveiras em Belem, muito proximos parentes dos Soures por duas affinidades; era um palacio (hoje paço real da praça de D. Fernando),

1 Port. rest., tom. 11, pag. 17.

2 Vid. no tom. ix do Archivo Pittoresco.

em cujos augmentos e ornatos se applicava com grande desvelo o seu proprietario o terceiro conde de Aveiras, que era maniaco por obras. Finalmente, farta já de vivendas particulares, que, apesar de ricas, deviam contrastar bastante com as residencias soberanas e antigas de Hampton-court, ou de White-hall, a que a viuva de Carlos II se habituara, passou-se de vez para o bello paço da Bemposta, que ella propria fundou muito a seu gosto, onde veiu a fallecer em 31 de dezembro de 1705 2. Ainda os brazões bipartidos de Inglaterra e Portugal, em escudos em lisonja, lá attestam a mão fcminina, e duas vezes real, que levantou esse palacio celebre.

e

Ora foi indubitavelmente depois de fevereiro de 1699 que a mesma augusta senhora se transferiu para Belem, porque ainda a 14 d'esse mez se achava no palacio Soure ao Bairro alto, ou aos Moinhos de vento, como lhe chamavam, onde lavrou testamento, que existe.

Julga o auctor de um dos nossos mais preciosos Diccionarios historicos e chorographicos, que a rainha de Inglaterra morou no palacio dos condes de Soure á Penha de França. É, segundo creio, manifesta confusão do douto investigador. Os Soures tinham, já então, é verdade, á Penha de França o enorme palacio de Monte-agudo, que lá está, se bem que muito mutilado; mas o testamento da rainha não deixa duvida, porque é datado do palacio sito

1 Hist. gen. da C. R., tom. v, pag. 332.

2 Ibid., tom. vii, pag. 333.

ao Moinho de vento, na côrte e cidade de Lisboa. Ora esse não deve confundir-se com o de Monteagudo, pois que nem este logar se chamava o Moinho de vento, como o outro; nem era em Lisboa, e sim no termo de Lisboa. Tomei a liberdade de rectificar este lapso de penna, porque, vindo de tão instruido escriptor, podia induzir em erro os estudiosos.

Direi agora como o palacio do Monte-agudo pertenceu á casa de Soure.

Fazia parte do morgado dos Carvalhos1, provedores das obras do paço. Era, pouco antes, o administrador Henrique de Carvalho e Sousa, que veiu a morrer n'uma pendencia com D. Luiz de Lencastre, depois conde de Villa-nova; estando a bater-se com D. Luiz, foi traiçoeiramente assassinado por um lacaio3. Herdou o vinculo o primogenito, Gonçalo José de Carvalho, que falleceu em 30 de agosto de 1698.

As palavras são como as cerejas; quer-se uma, vcem logo muitas; direi, como curiosidade, que n'uma Miscellanea manuscripta que possuo, ha uma carta de um amigo para outro, dando-lhe minuciosas novidades lisbonenses de 1697 a 1699; lá encontrei a morte de Gonçalo, por estes termos:

Falleceu Gonçalo Joseph, filho de Henrique de Car

1 Santuario Marianno. Tom. 1, pag. 433.

2 Hist.

gen. da C. R. Tom. XI, pag. 497.

* Ibid. pag. 238.

Pertencia aos manuscriptos da livraria de meu pae.

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