Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

CAPITULO III

Recapitulação do exposto.-Investiga-se a origem do nome de algumas ruas do novo bairro.-Feição campestre do sitio conservada nas denominações cidadãs.-Exemplos.—A rua da Barroca.- Frey João e o Mestre de Aviz.

Viu-se a quem pertenciam no seculo XVI os desertos pegados com a cerca de Lisboa; assistiu-se á fundação da casa professa de S. Roque; á faina da edificação de Villa nova de Andrade; á troca d'esse nome no de Bairro alto; finalmente: examinou-se o que eu sabia das origens da vasta campina metamorphoseada em cidade pela varinha magica da Companhia de Jesus.

Resta-me investigar a origem e o nome de algumas das ruas do bairro, narrar a historia succinta de algumas das suas casas religiosas e particulares, as tradições historicas e legendarias que por aquelles cunhaes e beirados habitam, como aves da noite; e por fim alguns dos caracteristicos peculiares de tão historica região.

É engraçado verificar que em muitas das arterias populosas que por ali atravessam, ficou impressa a feição primitiva dos sitios. Em muitos nomes d'essas ruas se rastreia o que ellas disfarçam; em muitos recantos prosaicos e de todo cidadãos do nosso Bairro alto se aninha, aqui, ali, com o seu bucolismo tão agradavel, a lembrança da vasta propriedade, hortelôa e vinhateira, do velho João de Altero. Vejamos:

A rua da Vinha, e a proxima travessa das Parreiras (hoje da Cruz de Soure), como que nos estão pintando na mente a vertente occidental toda verde, e sombreada de pampanos de uva escolhida, ufania da adega senhoril dos Andradas.

A travessa da Horta alastra-se aos olhos com a abundancia fresquissima do seu cognomento.

Á rua dos Cardaes não teriam chegado a charrua e os enxadões; por ali jazia o terreno inculto e arido, talvez para pastío do gado da quinta.

A rua da Palmeira e a travessa da Palmeira (que eram de certo no antigo Casal da Palmeira 1) elevam os olhos do espirito a algum façanhudo estipe, que amostrava de longe a sua grimpa verde. Quem sabe se o trouxera e semeara algum parente pelejador em guerras de Africa, ou Asia, que fôra levar o nome gallego dos Andradas a pagodes mirificos de naires, a senzalas de cafres, ou a aduares de Berberia!

A rua da Horta secca e a travessa do Sequei

1 Carvalho da Costa.-Tom. II, pag. 490.

1

ro dão pouco refrigerio ao coração, que se confrange quasi ao pensar na sitibunda alface, e nas renques amarelentas dos feijoeiros.

3

Mas lá está a travessa do Poço da Cidade 2, e a do Poço da Crasta e o Poço do Chapuz para dessedentar a quanto nabal se alastre n'esses contor

nos.

Em summa: a rua do Carvalho, a rua do Loureiro, a rua dos Jasmins, a rua da Era, a travessa da Era (ou hera), a travessa das Chagas velhas, a travessa da Laranjeira, ou das Laranjeiras, como d'antes se chamou, a rua das Parreiras, a rua das Flores, e talvez a praça das Flores, são risonhas amostras de um quadro que se perdeu, um grande quadro variegado, painel muito florido, a que talvez se apegassem, aqui, ali, n'algum canteiro, n'algum alegrete, n'algum caramanchão, memorias desconhecidas das lindas mãos de Brites ou de Helena de Andrada; e digo lindas, porque Miguel Leitão lá confessa, com ar malicioso, que havia então parentas suas bem formosas".

Apraz-me o nome do Moinho de vento, sitio d'onde se descortinava então um panorama delicioso, a

1 Se este nome não é acaso corrupção de travessa do Siqueira, que existia no tempo de Carvalho da Costa na freguezia de Santa Catherina.

2 Chamada vulgarmente, no tempo do terremoto, travessa do Brigadeiro, segundo vi no tombo mandado fazer por ordem do marquez de Pombal.

3 Ainda no tempo de Carvalho da Costa, que a menciona na Chorographia.-Tom. II, pag. 504.

4 Dial. 20.o

julgar pela elevação. A vista gravada no Urbium præcipuarum mundi theatrum, apresenta essa parte de Lisboa coroada de seus moinhos esguios. E ao passar ali hoje, n'aquella arteria tão concorrida, transporta-se o scismador ao deserto da grande lomba, e ouve os uivos do vento da serra no velame, e a viola ociosa dos moços do moleiro.

Tudo isto o que prova? prova o dominio absoluto da terra, a prevalencia da natureza sobre o homem, e o imperio que sobre tres longos seculos exerce ainda a sachola da jardinagem, o podão das cavas, a navalhinha das empas, e o enxadão dos hortelões.

Além de taes nomes, a que sem grande esforço se póde attribuir origem quintaneira, vejamos outros, e procuremos-lhes a genealogia.

A rua da Barroca é talvez das de mais antiga estirpe com que o bairro pode ufanar-se; ainda que outra barroca houve na proxima freguezia dos Martyres, que pode, com alguns fundamentos, disputar a esta a primasia.

De Jerusalem, onde ermava santamente, passou a Portugal em tempo d'el-rei D. Fernando um pobre castelhano, para algures n'este reino, onde a sua estrella o conduzisse, continuar a sua vida de emparedado, como outros muitos por cidades e villas.

A distancia não grande do velho convento de S. Francisco, e d'aquelles dorsos ermos e asperos de Monte-fragoso, sitio assim chamado seculos por 'Frey Apollinario da Conceição.-Demonstração historica da parochia dos Martyres.-Cap. 1.

causa dos alcantís e quebradas de todo elle, e que já no tempo de frey Manuel da Esperança se encobria com edificações urbanas 1, rasgava-se (como heis de acredital-o, moradores da Lisboa de hoje!?) rasgava-se uma barroca, logar selvatico entre todos; ennamorou-se d'elle a santa cubica do ermitão.

Foi essa a triste paragem eleita por aquelle servo de Deus, e onde elle achou n'uma pobre choça o seu carceresinho estreito voltado para o ceo; lá se deixou ficar embevecido na contemplação, que era todo o seu mundo, e nas orações, que eram todo o seu poder. João se dizia o forasteiro. Entrou o povo a appellidal-o Frey João da Barroca, pelo sitio onde ermava, e a consultal-o, e a veneral-o como a um douto, e a um santo. E tal era o clarão com que do alto se allumiava, que muita vez os seus avisos traziam em si mesmos os resplendores serenos de além-mundo.

As circumstancias quasi milagrosas de tal vida, perguntae-as a frey Manuel da Esperança 2, où mais directamente ao seu informador, o sisudo Fernão Lopes 3. Vereis como a frey João fôra inspirado que se partisse para Lisboa; como se aposentou nos seus miseros estáos da Barroca, onde os povos entraram o aconselhar-se com o homem bom, a visital-o com esmolas, e a chamar-lhe o Santo.

A nós outros baste-nos aqui memorar, que entre os consultores do bom velho, figura nada menos que

1 Hist. seraf. da Ordem de S. Francisco.-Tom. 1, pag. 186. 2 Ibid.— Tom. 1, pag. 237 e seg.

3 Chron. d'el-rei D. João I.—Part. 1, pag. 44 e seg.

« VorigeDoorgaan »