CAPITULO XXIII Considera-se o desenvolvimento do Bairro alto.-Providencias da governação.-As antigas corregedorias.-É assassinado o corregedor do Bairro alto. - Accumulação de fogos, e encarecimento das casas.- Perde o Bairro a sua feição campestre. O aceio municipal na Lisboa velha.- Noticia das antigas calçadas.-Chamam-se a testemunhas varios escriptores antigos.-Jacome Ratton.-O guano da cidade e o agua vae.-Abastecimento de agua potavel no Bairro alto; tentativas frustradas.-As praias da cidade quinhentista.Fica o leitor conhecendo um original, o vadio mais laborioso de Lisboa.-Memoria do sr. visconde de Villa Maior.-Conclusão do assumpto para perfumar o capitulo. Agora, que percorremos casas religiosas e casas particulares, paremos aqui; mas, sem sairmos ainda do Bairro alto, consideremos que importante não foi o seu desenvolvimento! segundo é claro, teve uma razão de ser, e respondeu a exigencias imperiosas da população. Eram já estreitas as muralhas torrejadas d'el-rei D. Fernando; Lisboa forçou essa prisão incommoda, e extravasou-se pela campanha. O extravasamento deu o bairro de S. Roque. Que foi consideravel n'aquella area o movimento policial, tudo o faria crer a priori; mas comprova-o a posteriori a disposição do alvará de 25 de março de 1742, dando á corregedoria do Bairro alto as freguezias da Encarnação e Sacramento, que já possuia, e de mais o suburbio de Campo-lide e freguezia nova de Santa Izabel, com os julgados de Bemfica, Friellas, e Appellação. O mesmo alvará creava um corregedor especial para o bairro de Santa Catherina, com alçada sobre as freguezias de Santa Catherina e Mercês, e abrangendo no termo os julgados do Milharado, Povoa de Santo Adrião, Odivellas, e Lumiar. O corregedor do Bairro alto foi, como se vê, um personagem de influencia; e a sua vara um sceptro que regia leguas em contorno. Pois era tal, ainda no fim do seculo xvii, o predominio altivo da nobreza, e em summa a attracção que tiveram para estas paragens as rixas e arruaças, que houve dois dos mais qualificados senhores da côrte d'el-rei D. Pedro II, que attentaram contra os dias do corregedor, o licenciado Ignacio Sanches de Goes. Foi assim o caso (releve-se-me esta digressão): Eram 8 de março de 1694; saía grande turba da egreja de S. Roque, pelas 5 horas da tarde. O corregedor, que assistira á festa, seguia pela rua larga de S. Roque a baixo conversando com um amigo; parou com elle á esquina da travessa que ia para a Trindade (hoje o largosinho defronte do theatro). N'isto subia um coche com dois mancebos elegantes, o conde do Prado e o conde da Atalaya. Comprimentou-os civilmente o amigo do corregedor; mas este, que estava de costas para o lado da rua larga, e que por isso não conheceu os condes, não poude cortejal-os a tempo, o que elles tomaram imprudentemente como insulto intencional. O coche vira para a travessa; pára; apeiam-se os dois peralvilhos; aproximam-se do magistrado, insultam-n'o de palavras, arrancam-lhe a vara, dão-lhe com ella no rosto, e possesso de ira desembainha o conde do Prado o espadim, e atravessa de lado a lado o inerme corregedor. Ao verem-n'o caír morto, entre o tropel de gente que se juntava, fugiram os dois infelizes, e acolheram-se á hospitalidade do embaixador de França, d'onde lograram evadir-se. Teve um sentença de morte, e o outro de degredo. Por fim, passados annos, vencido el-rei das supplicas de sua mulher, e das de sua irmã a rainha da Gra Bretanha, indultou-os por sentença de 6 de fevereiro de 1699. O que é notavel (chamem-lhe coincidencia fortuita, ou o que quizerem) é que veiu a morrer assassinado pelo espadim de um D. João de la Cueva, á saída da portaria dos padres do Espirito Santo, em 17 de setembro de 1722, o conde do Prado; e que o seu antigo complice morreu dois dias depois, a 19, em Vienna de Austria'. Terminou a diggressão. 1Vejam-se sobre tudo isto as sentenças de Moreira. Em dois seculos, até ao terremoto grande, a população agglomerou-se de modo pasmoso na nova região que estudamos da vasta Lisboa. Foram-se os jardins dos palacios; reduziram-se as cercas das casas monasticas; acabaram os muros das quintarolas e cerrados, que davam no principio áquellas ruas uma feição aldea e desafogada, de que os poderosos se deixaram seduzir. Supprimiram-se os quintaes, e os pateos. Os moradores, conglobados na area já estreita, a que os ligavam interesses e commodos, altearam-se por terceiros, quartos, e quintos andares; os casitéos pobres multiplicaram-se, e a colmeia começou a tornar-se menos elegante, e menos salubre certamente. Ha villas e cidades não tão populosas como estas poucas ruas hoje são. Já no meio do seculo XVII as casas tinham encarecido desmedidamente em Lisboa; a ponto de motivarem providencias repressivas d'el-rei D. João Iv1; se as podesse haver hoje para o desatino dos senhorios, não veriamos as iniquidades que em nome da liberdade se commettem. Da successiva accumulação de gente nasceu no Bairro alto o desenvolvimento dos commercios. Multiplicaram-se as lojas de comestiveis, e de tudo mais. A visinhança dos conventos attraíu concorrencia; não menos a attraíram os paços reaes, e as representações scenicas, tão populares, da rua da opera; tudo motivos de condensação crescente. 1 Fallo do alvará de 11 de junho de 1644. Com ella começaram os contras, perdendo, de todo, o bairro dos jesuitas não só a sua feição campestre de Buenos ayres quinhentista, que essa já tinha abalado, mas até as vantagens de nobreza e luxo de ruas, elegancia e formosura, claridade e bom ar, tão preconisadas dos escriptores coevos da fundação, assim como perdeu o aceio e alinho das suas serventias. Nos primeiros seculos da monarchia é impossivel que houvesse cuidado no tratamento das calçadas das cidades, nem sequer em Coimbra, onde residia a côrte, nem no Porto, onde varias vezes appareceu, nem em Lisboa, que as suas especialissimas condições tinham fadado capital do reino. Frei Nicolau de Santa Maria, que era muito noticioso, deu-nos parte de que no seu tempo as ruas da inclyta Ulyssêa, que n'um dos meus precedentes capitulos mostrei ladrilhadas (seguindo uma indicação que não encontrei senão na citada fonte), eram limpas, duas vezes por semana, por uns chamados carretões das immundicias. Antonio Prestes, o poeta dos Autos, alludiu algures aos monturos das ruas, e aos Almotacés da limpeza, que presidiam ao aceio da capital1. Balthazar Telles extasiava-se ante o limpo e saluberrimo dos cumes do Bairro alto, isentos, segundo elle, dos incommodos que se padeciam nas mais paragens da cidade velha 2. As chuvas, no dizer do 1 Auto da ciosa. Edição do Porto, 1871, pag. 339. 2 Chron. da comp. Parte 1, pag. 101. |