Confesso que, para contar tudo isto que contei, deixei muito no tinteiro. O meu estylo teve de ir saltando de poldra em poldra, com susto de se enlamear. Feliz eu, se chegando ao fim do capitulo não precisar offerecer ao leitor um frasco de agua de Labarraque, e outro de miel d'Angleterre. Vamos assim mesmo respirar o ar puro. tincto engenheiro, o sr. José Emilio de Sant'Anna da Cunha Castel-Branco, que fôra encarregado de ir estudar lá fóra os systemas de canalisação usados, declara que em 28 de janeiro ultimo entregou no ministerio das obras publicas o seu relatorio o qual se acha em via de publicação. Poucas vezes se tem visto nos pelouros da vereação lisbonense tanto zelo, tanta intelligencia, e tanto enthusiasmo. Espera-se por tanto muito da illustrada camara, e com direito. CAPITULO XXIV Comprova-se a decadencia do bairro.— Intrusão de fogos suspeitos.- Correm-se algumas providencias legaes no assumpto. O fadista do Bairro alto.- A comedia das ruas. — - Os pregões lisboetas.-Venda a retalho na Lisboa antiga.— 0 mercado do Rocio.—A carne em Lisboa.-Açougues e talhos. Os alquiladores e os caiadores.-O sr. Camillo Castello Branco apresenta ao leitor a Luizinha das camoezas. As marisqueiras.—As doceiras.-As negras do pote.--Outra vez os pregoeiros.-Pregões de primavera, de verão, de outono, e de inverno.-Os pregões das diversas horas do dia. Os domingueiros.-Uma celebridade do pregão lisboeta moderno.-Outra celebridade do pregão antigo.-0 decano dos pasteleiros. Visto que nos propozemos correr o bairro em todos os sentidos, precisamos notar que uma das suas feições mais accentuadas são uns fogos, que a policia arrebanha n'aquellas desventuradas ruas, decaidas, como as de Persépolis ou Palmyra, do seu antigo esplendor. N'outras eras a Cotovia é que arrematara o exclusivo da mercancia avariada. Quem poderia esclarecer o ponto era Ulysses, de quem trata o mais á séria possivel o bom de Luiz Marinho de Azevedo na sua obra, e alguns outros, como frei Apollinario na sua. Não sei quando começou tal intrusão no bairro mystico de S. Roque; mas sei que ha já seculos se destina em Lisboa arruamento ao genero. O mais antigo vestigio que achei é do seculo xv1; e a rua da mancebia, não sei onde, e as hortas do mesmo titulo sobre o Valle verde (hoje Passeio publico), parecem indicar em algum recanto suburbano algum parenthesis da castidade publica. Se quizesse continuar a pesquizar etymologias no cerco de Lisboa pelos castelhanos, citava (a modo de gracejo) palavras de Fernão Lopes. Encarecendo os commodos e abastanças do acampamento do pretensor, diz que até uma rua de taes habitações havia no arraial, tamanha como se acostumava nas grandes cidades. Ahi está pois remontado bem alto, e nobilitado com uma genealogia, não mais falsa que muitas outras, o povoléo mundanario, que pululla hoje pelo bairro que é o assumpto d'este livro, e por onde foi, ha cinco seculos, o abarracamento dos nossos inva sores. Isto porém era extramuros da cidade. Lá dentro não tratavam tão bem aquellas habitantes em tempo de guerra. Como não serviam para amasonas, foram lançadas fóra; eram boccas inuteis; vieram mendigar ao castelhano 2. Os reis D. Manuel, D. João III, e D. Sebastião, 1 Viterbo.- Elucidario, tom. II, pag. 110, col. 2.a 2Fernão Lopes.-Chron. d'el-rei D. João 1, cap. 148. promulgaram leis n'este espinhoso assumpto1. Um alvará policial do principio do seculo XVII allude claramente a sitios, que não nomeia, destinados a habitações de contrabando. Na Hespanha antiga vigiava-as um magistrado chamado alcaide da honra, cargo que o Elucidario de certo explicará melhor ao leitor do que eu o poderia aqui 3. Em Portugal era, por meio dos seus quadrilheiros, o meirinho das cadeias quem quem tinha para si tão melindrosa judicatura. As inquilinas viam-se obrigadas a varrer, por turnos, a casa das audiencias do corregedor do crime; resgatavam-se porém do encargo, pagando ao seu meirinho dois reaes brancos cada sabbado". Finalmente a propria Universidade de Coimbra prohibia, em 1591, que do arco de Almedina para cima vivessem os grupos, onde o nosso pudibundo Antonio Ferreira encontraria talvez as Faustinas do seu Cioso 5. Junto d'esse elemento caracteristico move-se, na mesma área estreita e escura, outro elemento cidadão não menos pittoresco; é o fadista, retratado a primor por Luiz Palmeirim no seu livro de Typos. Não tentarei aqui uma nova edição do fadista. 1 Nunes do Leão.-Coll. de leis extrav. 2 Ver o artigo xxii do curioso alvará de 25 de dezembro de 1608. 3 Além da palavra Alcaide, pode consultar-se para este assumpto o mesmo Elucidario, tom. II, pag. 110, col. 2.a Viterbo, loc. cit. * Estatutos da Univ. de 1591, liv. m, tit. 1, § 8.o Deixal-o lá, sentado na borda do mocho da taberna, arranhar na banza truanesca os amores do conde de Vimioso, mais os seus; deixal-o ir saracotear-se na espera dos toiros, todo chibante com a sua calça de bocca de sino, e a sua jaleca de alamares; deixal-o ir para as hortas ao domingo, deleitar, com os chistes ambiguos do ultimo fadinho corrido, os bulhentos freguezes da Perna de pau e do Alto do Pina. Estou-o a ver, encostado a uma ombreira, de chapeo para traz e mãos cruzadas nas costas, com os olhos piscos do fumo azul de um cigarrito engelhado, que de quando em quando lhe pende ao canto da bocca, exprimir no rosto encorreado, na fronte baixa e estreita, na nuca de cão de agua, e na melena recurva, que elle enchota com as costas da mão, todos os segredos ignobeis dos antros que lhe são theatro. A sua voz avinhada e rouquenha come umas palavras, e estropia outras, ao prantear a morte da Severa, n'um tom silvestre de acre melancholia indescriptivel: Ponde no braço da banza Assim como as flores vivem, Levantae-lhe um mausoleo, |