Que houve suspeitas fundadas, é innegavel; que se formou em volta do indiciado um silencio sepulchral, tudo o comprova. Cá por fóra a opinião amotinada expandia-se em boatos, em insinuações, em vociferações, em sonetos insultantes, e em pasquins venenosos, como por exemplo aquelle que appareceu uma madrugada no pelourinho: Está bello e excellente P'ra o conde de S. Vicente; sonetos e pasquins (dil-o-hei em parenthesis) attribuidos mais modernamente, sem fundamento algum, a Bocage, o qual estava então em Setubal, e era um menino de oito annos! Em summa: urgia dar uma satisfação á opinião publica. O corregedor de Bairro alto devassou. Foram presos os criados da casa de S. Vicente, e inquiridos; presa a Francisca Esteireira, interrogada e acareada a familia d'ella, o pae, a mãe, a irmã, mais a visinhança; e começava-se tambem a querer proceder contra Manuel Carlos da Cunha, apesar de grande do reino, de vice-almirante, de conselheiro de guerra, e de muito mais. Dias depois do attentado, indo o cardeal da Cunha, regedor das justiças e tio do reo, a casa do seu collega o omnipotente marquez de Pombal, na calçada da Ajuda, o marquez chamou-o de parte, e lhe disse que, não podendo já dissimular-se um caso tão grave, mas ao mesmo tempo não desejando el-rei ver uma execução na pessoa do conde de S. Vicente, não havia remedio senão retirar-se este logo logo para fóra do reino. O cardeal recolheu-se muito af flicto a sua casa, e mandou insinuar ao conde que sem demora abalasse. N'essa mesma noite, indo o cardeal ao paço, elrei D. José lhe perguntou particularmente: -O conde já se retirou? -Já, sim, meu senhor-foi a resposta. E el-rei só disse, com modo significativo: O conde sumira-se a toda a pressa, caminho de Badajoz, n'essa mesma tarde pelas tres horas. Os commentarios incançaveis do povo, eterno romancista, auctor e editor a um tempo, lá foram continuando, como podiam, a colorir o confuso e escuro desenho da aventura de Teixeira Homem. Teixeira Homem ficou legendario; e em volta da detestada casa do conde ausente, onde a innocente e espavorida condessa passava os dias em orações, pairavam hostis os odios anonymos da reparação popular. Nada mais sei do que isto, a não ser que passados quasi quatro annos, em abril de 1778, o conde de S. Vicente e seus co-reos saíam illibados por sentença, e culpado irremissivelmente, á revelia, um cadete, creio que já fallecido então, um tal Toscano, que teve de carregar com todo o odioso da covarde façanha. Descobriram, além do mais, que elle fôra rival de José Leonardo em não sei que outra aventura de amores de alto cothurno. Em quanto assim se daya baixa de culpa tão grave a um fidalgo da mais elevada nobreza, e protegido de toda a Lisboa influente, em quanto na mesma sentença os items da contrariedade erguiam ás nu vens as suas virtudes civicas e domesticas, e se verberava, em nome da rainha nossa senhora, a energica iniciativa do marquez de Pombal, já a esse tempo exillado e annulado, a verdade verdadeira só Deus a ficava sabendo. Quem pode calcular o que scismaria comsigo, ácerca da pouca firmeza das coisas humanas, o assassinado Teixeira Homem, quando no outro mundo avistasse o seu patricio Toscano! Ha de haver nos colloquios de além-tumulo apostrophes de uma terrivel eloquencia, se a podessemos nós outros penetrar. Saltando da rua das Salgadeiras para a da Rosa, direi que ignoro o appellido da celebre plaideuse, cujas mandas ou demandas de partilhas tanta bulha fizeram na Lisboa do seculo XVI, que poseram o titulo popular da demandista a uma rua. Devia sabel-o Miguel Leitão, porque essa era propriedade d'elle, mas calou-se; chama-lhe só da Rosa em 1629. Carvalho da Costa em 1712 chama-lhe n'uma parte da Rosa do Carvalho, e n'outra da Rosa das partilhas '. Quanto á rua Formosa, é nome antigo. Esta pertencia tambem a Miguel Leitão de Andrada. N'uma escriptura que elle fez em 1622 já ella tinha a denominação que hoje conserva, e cada dia justifica melhor. 1 Chorogr., t. III, pag. 504. Ácerca da rua dos Calafates, não posso dizer se era arruamento dos mestres d'esse officio; o que me consta é que no tempo de frey Nicolau de Santa CiMaria eram elles na Ribeira das naus nada menos exira, de seiscentos, prova evidente do nosso trafego naval. A travessa do Poço tira o nome de um poço publico, existente hoje n'uma casa particular da esquina d'essa travessa para a rua da Atalaya. A rua do Norte não pude aventar etymologia, por mais que barafustasse. Ha uma calle del Norte cm Madrid; d'ella diz D. Antonio Capmani e Montpalau, no seu livro Origen historico y etimologico de las calles de Madrid, que deriva o nome da sua posição á parte do norte. Acho tão vaga a conjectura, applicavel a tantas outras, que não me atrevo a acceital-a para cá. Ahi está tudo que sei, ou presumo, da origem de alguns nomes do bairro atravessamos. que É pouco; isso é; a imaginação dos leitores completará o que porventura me faltou. Convenço-me porém, de que através de outras denominações, mais ou menos vetustas, mais ou menos adulteradas, mais ou menos pittorescas, scintillam alcunhas plebêas, successos da chronica palreira dos nossos maiores, a vida de capa ɔ espada, ou a anecdota galante contada de geração em geração. N'outras retrata-se a feição primitiva dos logares, o destino primordial do terreno. O lettreiro municipal recorda-nos, ora a cruz que ali se erguia, ora o personagem bairrista que ali fez solar, ora o arvoredo silvestre que por ali vicejou. Sobre outros sitios desenrolam-se uns farrapos denegridos do codice truncado da nossa historia. Em summa: para quem medita, e se interessa no estudo do passado, toda aquella região se antolha cheia de memorias interessantes, que é dever quasi piedoso enthesourar. |