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CAPITULO V

Visita aos lares de um nobre lisboeta do seculo xvI.-É apre

sentado o leitor na casa de Nicolau de Altero.- Penuria de noticias.-Exhortação para que todos guardem papeis antigos. É mencionado o douto Innocencio.-Retrato de um fidalgote lisboeta.- Sobriedade e severidade do seu lar domestico. As vivendas nobres em Portugal.--O azulejo.— A mobilia portugueza.-A renascença italiana.-As modas. -O conchego domestico do casal.- Entretenimentos fragueiros. A caça e as cavalgadas.-O que era o Rocio no seculo XVI.-Os exercicios physicos de nossos avós.—Quadros de genero copiados de auctores antigos.-- Divertimentos da plebe.-Cita-se, para concluir, o Palito metrico.

Teve o leitor d'este livro a bondade de me acompanhar nos meus passeios de tunante artistico. Agora, depois de havermos percorrido a extensa região começada a civilisar, sentido confluirem para ali as forças economicas da velha Lisboa, visto rasgarse em ruas largas e alinhadas a face escabrosa da quinta suburbana; desejarei apresental-o mais detidamente na casa dos senhores da herdade primitiva, a fim de espreitarmos juntos, por mera curiosidade litteraria, o que podér ser da sua vida d'elles.

No entretanto, é empreza difficil o penetrarmos assim de assalto nos lares de um fidalgote lisboeta do seculo xvi; não que o homem ande, vestido de ferro e coberto do elmo de Mambrino, a afugentar da sua visinhança os viandantes; não que a sua casa, meio rural meio cidadã, possa ufanar-se com as ameias e as barbacas de um Stolsenfelz ou de um Ehrenbreitstein. Mas é que a nossa incuria portugueza, lamentavel e incuravel, deixou perderem-se tantas minucias interessantes dos antigos ménages do Portugal heroico e simples, que hoje em dia o recompormos em toda a sua harmonica singeleza um quadro de costumes quinhentistas, já como litteratos, já como pintores, já como devaneadores, já como simples contra-regras, é mais difficil do que restaurar o gyneceu ou o triclinio da casa de Diomédes, ou as tardes eruditas do Tusculano ou do Laurentino.

Nada é inutil no mundo; nenhum pormenor deixa de acrescentar algum traço caracteristico ao desenho do quadro. Por isso lastimo eu que os documentos particulares se extraviem por uso e desleixo. Que melhor fonte para investigações proveitosas, do que os testamentos, as escripturas de compra e doação, os inventarios dos bens moveis e immoveis? Com taes fragmentos se recompõe muita vez um cassetête, que dá luz á archeologia, ás sciencias economicas, ás artes do desenho, e até vem, não raro, allumiar algum alto facto historico deixado na sombra. Os registos genealogicos, assim commentados intelligentemente pelo tombo authentico das familias burguezas, são dos melhores subsidios a que se pode soccorrer a investigação do historiador.

-Guarda tantos papeis inuteis?-perguntei eu uma occasião ao douto e laborioso Innocencio (que tanta falta nos faz) vendo-o archivar em massos uma papelada informe de cartas mortas, recibos, roes, e outras coisas.

- Inuteis! retorquiu o mestre com a sua bondosa rudeza.- Que mal fazem estes massos de papeis? comem alguma coisa? Deixal-os viver em paz; são no seu tanto uma pagina de historia; obscura sim, mas historia. Aprenda commigo.

E aprendi.

Um amigo meu, erudito e estudiosissimo, conseguiu recompor assim, a traço e traço, feição por feição, ponto por ponto, uma interessante galeria de avoengos, que lhe abrange quatro seculos quasi, e que é não só preciosa no recinto da familia, mas o é tambem na esphera mais larga e mais nobre da historia patria. Por ali se avalia o que foi o viver intimo de umas poucas de gerações de portuguezes da alta classe média; por ali se lhes completa a lista dos haveres, a physionomia das alfaias e dos usos caseiros, o elenco dos amigos e das allianças, o grau de illustração de cada quartel genealogico; por ali se descreve o andamento da propriedade, o desenvolvimento da riqueza nas mãos d'este e d'aquelle, a influencia dos successos publicos na administração interna do casal, o progresso das idéas geraes n'aquelle mundosinho obscuro da parentella.

Um nobre lisboeta do seculo xvi (não digo um fidalgo de capello da alta nobreza, mas um simples

nobre) era uma entidade em quem se espelhavam, com todas as suas feições, muitos provincianos actuaes da classe culta. Foi aquella pequena nobreza uma raça á parte, meticulosa, irrequieta, audaz, e ao mesmo tempo ordeira; raça forte, como que temperada no sangue de infieis, costumada aos trabalhos, rude como o povo, de quem saíra hontem, contendo em germen as dedicações heroicas, soffredora e leal, e anciando, sem o saber, por uma coisa sublime chamada a Liberdade.

Iam pelejar á India aquelles homens, como se vae a um folguedo; punham alto a mira das suas ambições, porque a punham na gloria; tinham no nome herdado um palladio sacratissimo, a que sacrificavam tudo; e apesar dos exageros e desmandos do tempo, aquelles homens avultam aos nossos olhos como uns modelos de hombridade e grandeza. Alvorecia n'elles a potente e fecunda classe média da sociedade contemporanea.

Essas severas temperanças do varão nomada, brigão, e trabalhador, deviam imprimir, mais ou menos, em cada lar uma feição respeitavel e austera, que em varios usos se denunciava: o amor da familia, o apego á terra natal, com ser pobre e pequenina (ou por isso mesmo que o era), a fé, muita vez cega, no mysticismo bruxuleado de lendas, que os dominava desde a infancia, a fidelidade á honra, e a fidelidade ao rei. Isto tudo, como aquecido no nosso sol vivificante, modificado pelos nossos costumes patriarchaes, que nunca souberam a feudalismo, pela nossa constituição exclusivamente municipal, pela nossa indole aldea de campanario, que até

no viver buliçoso dos centros grandes transparece, isto, assim pouco mais ou menos, formava o coração e a intelligencia de um nobre portuguez.

Se penetrassemos na casa semi-rural de Nicolau de Altero, haviamos de encontrar necessariamente os mesmos predicados, e os mesmissimos defeitos da classe.

O seu lar não era o sweet home inglez e americano, aquelle perfumado ambiente que tanto desenvolve o coração e o amor da familia. O lar portuguez nunca possuiu, como não possue hoje, por via de regra, o segredo de se enflorar, pobre ou rico, das bagatellas intelligentes, que na casa ingleza apparecem dispostas com uma arte sempre nova, e sempre significativa. O lar portuguez é mais severo, menos embrincado, e mais sombrio.

Era Lisboa no seculo xvi o grande bazar em que a Europa, sempre sedenta de novidades, vinha aperceber-se das mais preciosas alfaias, importadas da India e da China a bordo dos galeões. Ha um capitulo 2 no apreciavel volume Descripção de Portugal, onde o sabio chronista conseguiu pintar superabundantemente as variadas mercancias, o trafego giganteo d'este emporio singular. E entretanto não creio que os habitos luxuosos se tivessem apoderado das classes medianas. Vivia-se entre opulencias, como n'uma feira oriental, mas nem todos se gosavam d'ellas.

1É o cap. XXXVI.

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