Isto de tagarellas não se calam em achando quem os escute. Como idéa associada aos exercicios physicos, sempre direi que havia em Lisboa por essas eras quatorze escolas publicas de dança (parece-nos hoje impossivel!), afóra homens que ensinavam os nobres em casa d'elles 1; de esgrima quatro escolas publicas, afóra muitos gentishomens que ensinavam pessoas nobres, e tinham numerosos discipulos 2. Isto era tudo nas classes distinctas. A plebe divertia-se lá a seu modo, nas lutas, nos jogos de pau, e outras praticas toleradas, quando não era nas que os alvarás excommungavam com affinco. Por exemplo: na pouco policiada Lisboa davam-se frequentes batalhas campaes á pedrada, entre o rapasio e até os homens de bairros differentes, com grave escandalo da ordem publica, e descommodo da visinhança; e chegaram quasi aos nossos dias (que o digam as celebres Bella Cotovia do Palito Metrico), apesar de serem de Filippe II as energicas providencias legaes contra taes licenças 3, e outras parecidas. Tudo isso felizmente acabou. Lisboa pode orgulhar-se da sua policia. Nós acabemos tambem por hoje, e amanhã continuaremos a esquadrinhar a vida dos nossos avoengos. 1 Christ. Rodr. de Oliv. Summario, pag. 108. 2 ' Id., ibid. 3É ver os alvarás de 31 de janeiro de 1604, e de 13 de fevereiro do mesmo anno na collecção da legislação. A gastronomia do seculo xvi.-A loiça, os crystaes, e as iguarias.-Opinião dos estrangeiros ácerca das vitualhas em Lisboa.-Averigua-se a propriedade de mais uns terrenos pela familia Andrade.—Curiosa noticia sobre as antigas calçadas da capital. O ladrilhador Jorge Fernandes.—É apresentado o leitor ás senhoras da casa de Nicolau de Altero.-Martha de Andrade.-Brites de Andrade.-O viver das antigas portuguezas.--Os mosteiros.-As festas de egreja.—A musica sacra. As rebuçadas.-Providencias legislativas contra essa tal moda.-Retrato das portuguezas por um coevo. ---Os serões na casa de S. Roque.—As amas e as escravas. O macaco e o papagaio.- As leituras.- Livreiros antigos. -Os jogos dos homens.-Os serões de dança.— As allianças de familia.-Novo casamento de Brites de Andrade.Apresenta-se ao leitor o noivo Miguel Leitão de Andrade. CAPITULO VI D'esta feita é justo que principiemos por alguma coisa solida, visto que o final do capitulo v nos deixou exhaustos e fartos de exercicios physicos. Trataremos da meza de Nicolau de Altero. Havia já n'esse tempo grande apuro gastronomico pela culta Europa. Em Portugal as toalhas de Flandres cobrian-se de lindas baixellas, mimos indianos, que faziam estremecer a philosophica e severa me diania da quinta da Tapada, Reluszám crystaes fa-; r ceados e doirados; alvejavam gomís de prata lavrada; o saleiro, assim como as galhetas, recusariam servir se lhes não dessem para supportes pratilhos de valia. Em volta do seu prato, podia emfim cada conviva gosar-se já do nosso talher de garfo, colher, e faca, innovação que assim completa não tinha mais de uns cento e cincoenta annos. Havia-os por cá bellissimos, e como hoje não ha: de prata, com cabos de crystal guarnecidos de oiro 1. A loiça mais vulgar devia ser a branca de Sevilha e de Talavera 2, além da ceramica nacional, já muito em voga, de Estremoz e Monte-mór o velho, a qual (com ser pobre) não deixava de figurar nas refeições d'el-rei D. Sebastião 3; mas para honrar condignamente as invenções culinarias dos Vateis do tempo, lá estavam as loiças chinezas esmaltadas, frequentes nos nossos dominios, para assombro da Europa, onde o não eram. D'esse modo, as capoeiras, habitadas do que havia de mais apreciado, vinham triumphar entre primores na solemnidade já muito artistica dos festins. A opinião sincera do secretario d'aquelle cardeal Alexandrino que foi enviado a Portugal pelo santo padre Pio v em 1571, o já citado Venturino, era porém que as mezas de Lisboa não podiam competir com a boa ordem, a abundancia, e o escolhido 1 Relação individual citada. 2Estatistica mss. em lettra gothica moderna, obra anonyma, mas preciosissima, da Bibl. nac. de Lisboa. 3 Segundo conta o citado Venturino na sua relação de viagem em Portugal. Panorama, vol. vi. das de Madrid, porque os portuguezes, diz elle, não teem habito de banquetear-se. Referindo-se ás festas da côrte, diz que se conhecia a boa vontade com que os nossos davam tudo, e que ostentavam abastança de peças de oiro e prata, e eram servidos por muitos criados; mas achava as iguarias mais grosseiras que delicadas, os vinhos fortes, e a fruta pouco singular, estremando-se o pão e a carne, que eram optimos 1. Concordam com o Venturino os legados da republica de Veneza Tron e Lippomani, que da parte da senhoria vieram em 1580 a Lisboa comprimentar Filippe 1. Nas suas impressões de viagem, que são curiosas para a historia dos costumes, observam elles que a respeito de vitualhas não se hão de buscar em Lisboa coisas muito exquisitas 2. Bem dizia Francisco de Sá com o seu feliz humor habitual: Os bons convites antigos, Fossem, ou não, severas de mais aquellas opiniões diplomaticas, muito desdenhosas quasi sempre (desdem de estrangeiros, como diz com graça o au 1 Relação d'essa viagem. Panorama, vol. vi, pag. 346. 2 Panorama, vol. vii, pag. 98. 3 Satyra 3.a ctor do Auto da Ave Maria), o que parece é que para um viver largo e luxuoso á melhor moda da sociedade culta, devia possuir os necessarios rendimentos este proprietario Nicolau de Altero, como senhor de boa porção dos terrenos do opulento bairro novo. Afóra essa tal casa onde habitava, outros chãos possuia por ali. Sigamos um fio partido que encontrei, comprovativo d'essa posse. Entre os haveres da familia figurava uma herdade no sitio denominado os Cardaes, junto á rua Formosa. Chamavam-lhe então os Cardaes de S. Roque; era sitio muito ermo. Nada mais avultava ali do que uma antiga ermida com um ermitão. Logo direi como em 1595 um tal Luiz Rodrigues, que ali veiu a possuir uma casa, a doou para se edificar o convento de Nossa Senhora de Jesus 1; e como, depois de edificado o convento, os cardaes passaram a denominar-se de Jesus, como ainda hoje. Ainda no principio do seculo passado por ali algures existia uma quinta chamada dos Cardaes 2. O tamanho exacto d'essa tal herdade dos Cardaes pode calcular-se ao certo; tinha dezasete chãos. O chão, como muitos sabem, era uma medida, de que usava a cidade de Lisboa, de sessenta palmos de comprido e trinta de largo 3. Arbitremos pois a esta herdade 30:600 palmos quadrados. Em 1558 o seu proprietario Nicolau de Altero aforou-a por 6$800 1 Carvalho da Costa. Chorographia.—Tom. ш, pag. 495. 2 Id., ibid., pag. 490. 3 Miscellanea.-Dial. x. |