CAPITULO VII Miguel Leitão de Andrada e o seu precioso livro.— Analyse rapida da Miscellanea. No meu ultimo capitulo apresentei Brites de Andrade a ponto de realisar o seu enlace matrimonial, nada menos que com o futuro auctor da Miscellanea. Apparecera elle pretendente á mão de sua formosa prima, e obtivera consentimento, sem que o empecesse a lenda tenebrosa, que (no dizer de um genealogista) pairava sobre o seu nome: nem mais nem menos do que a suspeita de ter sido elle o matador da sua primeira mulher, D. Ignez de Atouguia. Em quanto a casa de S. Roque celebra as bodas da rica herdeira Brites de Andrade com seu primo Miguel, conversemos d'elle um pouco, e examinemos de espaço essa originalissima personagem. * A verdade é que de toda a enfunada geração de Andradas, que tão alto remontam a grimpa da sua arvore, e de tão fundo lhe deduzem a raiz, quasi que se perderam as memorias. Vivem n'algum nobiliario, se é viver esse desterro entre as folhas amarellentas de uns livros que ninguem lê, esse reinar de mumias em mausoleo, esse jazer entre saudades do que foi, á luz crepuscular que vem das chronicas. Se viver é isso, vivem muitos Andradas nos livros de linhagens d'este reino, aventureiros da India, padroeiros de capellas, escrivães de chancellarias, capitães de ginetes, homens bons, de peleja e de conselho; vivem estirados como estatuas de tumulo, vivem da vida morta do que lá vae!... D'entre todos porém um d'elles conserva ainda, e para sempre, uma individualidade mais vivaz; chegou intacto ao nosso tempo; traz em si mesmo toda a energia e crença do seu seculo; conversa comnosco, amavel, tagarella! e entre sorrisos consegue impor, pelos seus chistes e donaires, a sua curiosa personalidade. É Miguel Leitão; salvou-o e immortalisou-o um nada: o livro sincero e facil que elle chamou a sua Miscellanea. E andou avisado na escolha do titulo do opusculo, que afinal de contas é o retrato do auctor. Miscellanea é o livro, e miscellanea é quem o escreveu. O livro é um mixto de bom e mau; o auctor é tambem (como elle tanta vez caracterisa a sua obra) uma salada de varias plantas. É lel-o; é correr aquellas paginas desestudadas, onde o bom do escriptor enthesoirou sem o saber tanta riqueza; é deixal-o narrar, na fórma de dia logos correntios e pittorescos, o que viu, o que foi, que amou, o que fez, e ver palpitar a sua era, com as suas superstições, a sua força, as suas fraquezas, as suas indifferenças, os seus orgulhos, o seu poder. A Miscellanea de Miguel Leitão de Andrada pode dizer-se um grande basar sui generis de velharias. Ha ali desde o elmo reluzente, até ao livro de horas. Ha o negligente sombreiro do lavrador senhoril; ha a valente espada damasquina que pelejou em Alcacer-Kibir; ha a guitarra dos descantes, companheira fiel das longas noites do captiveiro; ha sellas e xaireis de ricos jaezes, com que se entrava galhardo nos jogos; ha deliciosos quadrinhos de genero e costumes; ha o rosario de pau santo, em que os cavalleiros portuguezes coavam orações a grão e grão; ha os retratos de familia melancolicos e esquecidos; ha o espaldar das séstas do Pedrogam, onde tão bem sonhados somnos se dormiram; ha até a arca empoeirada dos tombos e papeis velhos, d'onde sae um perfume indizivel de saudades. Na ordem moral, contém o livro de Miguel Leitão a crença em Deus e nos seus santos, profunda, inabalavel, meticulosa; o orgulho, que em taes cavalleiros se chamava, de paes a filhos, dignidade; o desejo do bem; o afferro ás coisas da familia; e, no seu tanto, a graça portugueza á D. Francisco Manuel, o desenfadado bom humor, a franqueza gazalhadora, a cortezania antiga, os casos galantes para rir; em tudo a satisfação intima do narrar, e ao mes mo tempo, aqui, ali (quem tal diria?), as nostalgias amargas do cantinho natal. Isto julgo eu a Miscellanea. Deixar lá dizer que o auctor não poz ordem nem systema nas suas praticas, que as suas noticias são minucias de espirito ocioso, que o livreco só cura da genealogia do auctor. Quem tal diz não o apreciou; falseou-lhe o ponto de vista, e calum niou-o. Prouvera a Deus que tivesse havido em seculos mais antigos outros Migueis Leitões, a contarem á posteridade a vida dos lidadores de Aljubarrota, ou dos infanções de Ourique! prouvera a Deus que no geral se quizesse entender o que são e o que valem as memorias intimas, porque de todas as obras as que melhor sabem no futuro são as que se escreveram sem mira na publicidade, são as autobiographias e memorias, que, por assim dizer, furtamos ao segredo de seus auctores. Que valia não teem as cartas de Plinio, e as da marqueza de Sévigné! as de Cicero ou Voltaire, e o diario rol do Sire de Gouberville! N'essas paginas, como que se surprehende o segredo alheio, inconfidencia inoffensiva que dá um genero de gosto litterario, a que poucos são superiores. Essas obras, apesar de impressas, teem o que quer que seja de manuscriptos, que dá um prazer de novidade, um desfructe de estreia á sua leitura e ao seu estudo. Ora a Miscellanea não é d'esse numero precisa mente, e comtudo não deixa de o ser. A Miscellanea foi publicada por seu auctor, escripta para ser impressa, e assim mesmo captiva-nos na sua espontaneidade facil, e pelo seu pouco ou nenhum preparo attrae-nos como conversação inedita. Miguel Leitão conversa bem. Tem graça, a graça do tempo, mas culta. Deixem-no narrar, e dão-lhe a maior das alegrias. A falta de ouvintes elle a si proprio se escuta. Não se cala; e não acabo de entender como não fez quarenta dialogos em vez de vinte. Leu muito. Pertence ao numero, não escasso, dos cavalleiros lettrados. Com o seu amigo Camões pode dizer n'uma das mãos a penna, e n'outra a lança. Manuseia de bom grado as breviações dos chronistas portuguezes. Pára a escutar uma velharia, e faznos parar depois para lh'a ouvirmos. Quer muito aos livros de cavallarias; manuseia-os; a sua narrativa o comprova. Ha n'elle um quid de Plinio velho: naturalista, curioso investigador de porquês, e crendeiro. Revê-se nos quadrinhos que engenha. Não é á propria um pintor historico; até nem é um retratista. Aquelle sombrio dialogo vII, com ter muitos toques grandiosos, não é alta pintura. E no emtanto ninguem mais sincero, mais vivaz de côres, e mais acertado no desenho. |