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Escreve uma prosa arrendada muita vez em arabescos, que lembram as molduras dos azulejos do tempo, mas de bom sabor provinciano portuguez, entresachado a partes de castelhanas louçanias.

Cita Euripides e David, Duarte Nunes e S. Thomaz de Aquino; Cicero e Tertulliano; e cita-os com certo desvanecimento muito desculpavel.

Tange uns versos taes ou quaes em portuguez e em castelhano, versos quasi tão bem medidos como os botes da sua valente espada, poesia monotona como as melopêas da toadilha popular, canções e elegias semi-camonianas e semi-cervantiscas, cheias de mysticismo, e que illumina o devoto amor que lhe merece a Virgem Senhora da Luz do seu Pedrogam.

É bom cavalgador e muito cortesão; brilhou em moço nos estrados das damas, depois de ter sido em menino o mais endiabrado gaiatete, o mais moído de quedas, brigas, e desastres, que pode imaginar-se, e em mancebo um estudante travesso e arruador, de dar certamente brado em Coimbra, onde começou a cursar a faculdade de canones.

Em pequeno foi com os outros de sua edade, por aquelles pomares e hortas da sua villa, um cavalleirosinho descobridor, sempre á beira de peripecias, sempre a correr aventuras. Em homem foi uma creança credula e mystica; entretinham-no tanto as tardes de cannas e toiros, e as carreiras desenfreadas em desenvoltos corceis, como os esplendores das festas de egreja, ou a jactancia da sua estirpe galliciana. Decididamente, este homem é uma miscellanea. Crê em Deus, mas crê tambem nos perus de qua

tro pernas, e nos passarões com garras de leão, propriedade exclusiva do duque de Bragança.

Baste-nos que assim fique estudado Miguel Leitão de Andrada pelo summario que de si proprio nos deixou, sem o saber.

Isso é em duas pennadas a Miscellanea, e isso é em dois traços o seu auctor.

Como escriptor, é um amador distincto, e quasi um artista. Como pensador, encontro-lhe muito de Miguel de Montaigne, com egual bom senso, mas muito menos cultura e philosophia. Como homem, ha n'elle a altivez lhana de um nobre portuguez, e largas vistas em prol da patria. Fraqueja uma ou outra vez perante o usurpador? fraqueja. Dobra os joelhos senís ante o filho de Carlos v? dobra; porque o havemos de dissimular? Mas, santo Deus! nem todos podem ser um D. Francisco de Portugal, o grande, o gentilissimo conde de Vimioso. E depois, pergunto: os ares mephyticos d'aquelle tempo nada são? e a opinião geral não é um predominio? e os factos consummados não tiveram sempre uma força irresistivel? e a energia não se gasta? e uma vida tão trabalhada nada vale? Respeito e perdão ao octogenario cavalleiro.

E ainda assim (diga-se bem alto) poucos livros estillam tanto brio communicativo como este que elle deixou. É singular. Mas ha cordeaes litterarios.

A prosa da Miscellanea tem, ao menear-se, um

retinir de esporas e um arrastar de colubrina. Prosa de raça. E se n'esse volume vemos reflectir-se por um lado o sol poente de 1578, e o crepusculo da batalha da ponte de Alcantara; já no outro cabo da obra, apesar das nuvens, alvorece o arrebol de 1640.

CAPITULO VIII

Resolve-se o auctor a bosquejar a biographia de Miguel Leitão de Andrada.-Em que anno nasceu o cavalleiro é ponto controverso.-Seu pae o bondoso Belchior de Andrada.-Infancia de Miguel no Pedrogam Grande.-Recordações da sua buliçosa meninice.- Sua mãe Catherina Leitôa, grande mãe e digna esposa.- Mencionam-se a correr os irmãos do nosso heroe.

Suspeito que o leitor se não deu por satisfeito com os traços em que esbocei, com broxa de scenographo, o retrato moral e litterario de Miguel Leitão, e deseja que lh'o complete com alguns pormenores biographicos. Annuo. Direi o que souber, ainda que isso nos vae fazer sair um pouco fóra do nosso proposito, que era só o estudo do Bairro alto. Afinal de contas parece-me tem razão a exigencia. O fallarmos de Miguel, aquelle typo original da nossa litteratura palaciana e cavalleirosa, não desdiz do assumpto d'estas excursões archeologicas; tanto mais, que pelo seu casamento com Brites de Andrade veiu o auctor da Miscellanea a ser proprietario de uma boa parte do mesmo Bairro; isto é: veiu a possuir

ali o dominio directo de seis ruas: a da Rosa, a de S. Boaventura, a da Vinha, a do Loureiro, a da Cruz, a Formosa, e mais um casal não sei por onde.

Enganar-se-hão porventura os doutissimos escriptores Barbosa Machado e Innocencio, dizendo que Miguel Leitão de Andrada nasceu em 1555? Sup

ponho que sim; creiu que os induziu em menos exac

ção a gravura da Miscellanea, o retrato do auctor, cuja data referem ao anno da publicação do livro, 1629. Pode ser que essa estampa, que marca ao nosso cavalleiro setenta e quatro annos, fosse feita em 1627, ou copia de algum retrato a oleo executado no mesmo anno. O que tenho por certo é que no testamento authentico, visto e citado pelo investi · gador Manço de Lima, o proprio Andrada declara em 28 de setembro de 1627 cumprir setenta e quatro annos; logo confessa implicitamente ter nascido em 28 de setembro de 1553.

È verdade que n'outra parte1 elle tambem declara que ao tempo da morte de seu pae Belchior de Andrada, em 1568, tinha uns treze annos, o que transtorna a affirmação do testamento, e repõe o anno de 1555. Mas é não menos verdade que:

1. N'este segundo caso elle diz vagamente uns treze annos, o que pode provir, ou de lapso da sua memoria senil, ou de desejo innocente de se remocar;

2.o O testamento é feito com solemnidade, talvez á vista do documento, e tão repoisadamente, que até cita com exacção o mez e o dia.

1 Miscellanea.- Dial. vII, pag. 126.

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