Da vida ja perdido Neste tormento meu tão duro e esquivo, O ficar e o partir-se, a morte e a vida. Ou tenho a natureza em mi mudada. CANÇÃO XV. Qu'he isto? Sonho? Ou vejo a Nympha pura, Que sempre na alma vejo? Ou me pinta o desejo O bem qu' em vão cad'hora m'assegura? Mal póde a noite escura, Amando a sombra fria, Mandar-me em sonho a luz formosa e bella, Que se não torne em dia, De seus luzentes raios inflammada. Oh vista desejada De graciosa Nympha e viva estrella! Que ha tanto que por este mar navego (Sem ver meu claro Polo) escuro e cego. Nesses formosos olhos, d'enlevada, Minh'alma se escondeo, Quando ordenava o Ceo Que vivesse comigo desterrada. Vós a mais certa estrada De ver a summa alteza, Do effeito a causa abris a est'alma minha. Assi mortal belleza Só della nasce, e nella se resume; Assi celeste lume Lá dos ceos se deriva, e lá caminha. Tecei-me a rede de ouro Em que prendeo Vulcano a Cypria e Marte. Des que com gentil arte Vestis de flores bellas A terra em que tocais co'a bella planta, Quantas vezes com vellas Quiz n'huma d'essas flores transformar-me? Porque, vendo pizar-me D'esse candido pé, que a neve espanta, Póde ser que na flor mudado fôra Que deo a Juno irada linda Flora. Mas onde te acolheste (ó doce vida!) Mais leve e pressurosa, Do que na selva umbrosa Cerva d'aguda setta vai ferida? Se para tal partida, Meus olhos, vos abristes, Cerrára-vos o somno eternamente, Antes que ver-vos tristes, Perdendo tão suave e doce engano! Vêdes, para mor mágoa, claramente, Neste bem fugitivo e somno leve, Que mal não ha mais longo, que hum bem breve. Ditoso Endymião que a deosa chara, Que a noite vai guiando, Teve em braços sonhando! Ah quem de sonho tal nunca acordára! Tu só, Aurora avara, Quando os olhos feriste, Me mataste cruel d'inveja pura. A negra escuridão vencer quizeste, Que para desfazer-se a nevoa escura Não m'aviva, Canção, branda e quieta, CANÇÃO XVI. Por meio d'humas serras mui fragosas, Porqu'em prados Esmaltados Com frescura De verdura, Assi se mostra amena, assi graciosa, As correntes se vem, que acceleradas, Com mil brancas conchinhas a aurea areia Voão aves; Mil suaves Nos raminhos Acordemente estão sempre cantando, E d'outro o pintasirgo lhe responde; O caçador sentindo, se levanta: Voando vai ligeira mais que o vento; Outro assento Vai buscando; Porém quando Vai fugindo; Traz ella mais veloz a setta corre, De que ferida logo cahe e morre. Aqui Progne d'hum ramo em outro ramo, Co'o peito ensanguentado anda voando, Cibato para o ninho indo buscando; A leda codorniz vem ao reclamo Do sagaz caçador, que a rede estende, E pretende Com engano Á coitada, D'huns esparzidos grãos de louro trigo, O rocio Fresco e frio Por o prado D'herva ornado, Camões II. 23 |