Como a formosa mansa fera, quando Bonina pudibunda, ou fresca rosa, Quando os raios do sol no Touro estão, Como esta flor, que os olhos inclinando, Ligeira, bella Nympha, linda, irosa, Não creio que seguio Satyro, cujo brando coração D'amores commovesse fera irada, Este tormento, donde Amor mostrou Nunca, emfim, cousa bella e rigorosa Qu'iguale aquella fórma e condição, Que as dores em que vivo estima em nada. Mas com tão doce gesto, irado e brando, O sentimento, e a vida m'enlevou, Que a pena lhe agradeço. Bem cuidei d'exaltar em verso, ou prosa, Aquillo que a alma vio Entre a doce dureza e mansidão, Primores de belleza desusada; Mas quando quiz voar ao ceo cantando, Naquella alta pureza deleitosa E nos olhos Angelicos, que são Saudade e suspeita perigosa, Por castigo daquelles que se vão; Amor isento a huns olhos m'entregou, Nos quaes a Deos conheço. O DE III. Se de meu pensamento Tanta razão tivera d'alegrar-me, Quanto de meu tormento A tenho de queixar-me, Puderas, triste lyra, consolar-me. E minha voz cansada, Qu'em outro tempo foi alegre e pura, Não fora assi tornada, Com tanta desventura, Tão rouca, tão pezada, nem tão dura. A ser como sohia, Pudera levantar vossos louvores; Vós, minha Hierarchia, Ouvireis meus amores, Qu'exemplo são ao mundo ja de dores. Alegres meus cuidados, Contentes dias, horas e momentos, Oh quanto bem lembrados Sois de meus pensamentos, Reinando agora em mi duros tormentos! Ai gostos fugitivos! Ai gloria ja acabada e consumida! Ai males tão esquivos! Qual me deixais a vida! Quão cheia de pezar! quão destruida! Mas como não he morta Ja esta vida? como tanto dura? Como não abre a porta A tanta desventura, Qu'em vão com seu poder o tempo cura? Mas para padecê-la S'esforça o meu sogeito e convalece; Que só para dizê-la, A força me fallece, E de todo me cansa e m'enfraquece. Oh bem affortunado Tu, que alcançaste com lyra toante, Do fero Rhadamante, E co'os teus olhos ver a doce amante! As infernaes figuras Moveste com teu canto docemente; As tres Furias escuras, Implacaveis á gente, Applacadas se vírão derepente. Ficou como pasmado Todo o Estygio Reino co'o teu canto; De seu eterno pranto, Cessou de alçar Sisypho o grave canto. A ordem se mudava Das penas que regendo está Plutão; Em descanso se achava A roda de Ixião, E em glória quantas penas alli são. De todo ja admirada A Rainha infernal e commovida, Te deo a desejada Esposa, que perdida De tantos dias ja tivera a vida. Pois minha desventura, Como ja não abranda hum' alma humana, Qu'he contra mi mais dura, E inda mais deshumana, Que o furor de Callirrhoë profana? Oh crua, esquiva e fera, Duro peito, cruel e empedernido, D'alguma tigre fera Lá na Hircania nascido, Ou d'entre as duras rochas produzido! Mas que digo, coitado! E de quem fio em vão minhas querellas? Só vós, ó do salgado, E claras Nymphas, condoei-vos dellas. Vossas louras cabeças levantando As tranças gottejando, Sahindo todas, vinde a ver qual ando. Sahi em companhia, E cantando e colhendo as lindas flores; Vereis minha agonia, Ouvireis meus amores, E sentireis meus prantos, meus clamores. Vereis o mais perdido E mais infeliz corpo qu'he gerado; Qu'está ja convertido Em chôro, e neste estado Somente vive nelle o seu cuidado. O DE IV. Formosa fera humana, Em cujo coração soberbo e rudo A força soberana Do vingativo Amor, que vence tudo, As pontas amoladas De quantas settas tinha tee quebradas: Amada Circe minha, |