Postoque minha não, com tudo amada; A quem hum bem que tinha Da doce liberdade desejada, E se mais tenho, mais entregarei; Pois natureza irosa Da razão te deo partes tão contrárias, Que sendo tão formosa, Folgues de te queimar em flammas várias, Sem arder em nenhua Mais qu'em quanto allumia o mundo a lũa; Pois triumphando vás Com diversos despojos de perdidos, ́ Que tu privando estás De razão, de juizo e de sentidos, E quasi a todos dando Aquelle bem que a todos vás negando; Pois tanto te contenta Ver o nocturno moço, em ferro envolto, De Jupiter em ágoa e vento sôlto, Á porta, que impedido Lhe tee seu bem, de mágoa adormecido; Porque não tens receio Que tantas insolencias e esquivanças A deosa, que põe freio A soberbas e doudas esperanças, Castigue com rigor, E contra ti se accenda o fero Amor? Ólha a formosa Flora; De despojos de mil suspiros rica, Camões II. 24 Por o Capitão chora, Que lá em Thessalia, emfim, vencido fica, E foi sublime tanto, Que altares lhe deo Roma e nome santo. No seu salteiro insigne conhecida; Se perdêrão, perdeo a chara vida Na rocha que se infama Com ser remedio extremo de quem ama. Por o moço escolhido, Onde mais se mostrárão as tres Graças; Que Venus escondido Para si teve hum tempo entre as alfaças, Pagou co'a morte fria A má vida que a muitos ja daria. E, vendo-se deixada Daquelle por quem tantos ja deixára, Precipitar da infame rocha chara: Que o mal de mal querida Sabe que vida lhe he perder a vida. Tomae-me, bravos mares; Vós me tomae, pois outrem me deixou. Disse: e dos altos ares Pendendo, com furor s'arremessou. Acude tu, suave, Acude, poderosa e divina ave. Toma-a nas azas tuas, Menino pio, illesa e sem perigo, Antes que nestas cruas Ágoas cahindo apague o fogo antigo. De viver, e ser tido por estranho. Para as lobas isentas, que amor vendem, Que tambem ficão presas as que prendem. Assi o deo por sentença Nemesis, que Amor quiz que tudo vença. O DE V. Nunca manhãa suave Estendendo seus raios por o mundo, Despois de noite grave, Tempestuosa, negra, em mar profundo Se vio em mares grossos, Como a luz clara a mi dos olhos vossos. Aquella formosura, Que só no virar delles resplandece; E com que a sombra escura Clara se faz, e o campo reverdece; Quando o meu pensamento se entristece, Ella e sua viveza Me desfazem a nuvem da tristeza. O meu peito, onde estais, He para tanto bem pequeno vaso; Quando acaso virais Os olhos, que de mi não fazem caso, Bem como a borboleta faz no lume. Se mil almas tivera Que a tão formosos olhos entregára, Por as pestanas delles pendurára; Se andárão sempre vendo nas meninas. Agora vivereis de taes querellas, Não pudesseis tirar os olhos dellas; Não pode ser que, vendo a vossa entr' ellas A dor que lhe mostrassem, Tantas huma alma só não abrandassem. Mas, pois o peito ardente Huma só póde ter, formosa Dama, Basta que esta somente, Como se fossem mil e mil, vos ama, Para que a dor de sua ardente flama Comvosco tanto possa, Que não queirais ver cinza hum'alma vossa. O DE VI. Póde hum desejo immenso Arder no peito tanto, Que á branda e á viva alma o fogo intenso E purifique em tanta alteza o esprito Que faz que leia mais do que vê 'scrito. Alto, tanto allumia, Que se o nobre desejo ao bem s'estende N'outra especie melhor que a corporal. De viva formosura, Que de tão longe cá noto e contemplo Se de humanos não tem muita vantagem. Não vem a compassada Proporção, que das côres excellentes De pureza e vergonha he variada; Da qual a Poesia, que cantou |