Na mão que a dura Pelias meneára; Alli canta e suspira, Não como lh'ensinára O velho, mas o moço que o cegára. No berço instituido A não poder deixar de ser ferido? D'outro mais poderoso foi sujeito, Desd'o princípio feito, Com lagrimas banhando o tenro peito? Se agora foi ferido Da penetrante ponta e fòrça d'herva; E se Amor he servido Que sirva á linda serva, Para quem minha estrella me reserva? O gesto bem talhado; O airoso meneio e a postura; O rosto delicado, Que na vista figura Que s'ensina por arte a formosura, Como póde deixar De render a quem tenha entendimento? Que quem não penetrar Hum doce gesto, attento, Não lhe he nenhum louvor viver isento. Aquelles, cujos peitos Ornou d'altas sciencias o destino, Se virão mais sujeitos Ao cego e vão menino, O Rei famoso Hebreio, Que mais que todos soube, mais amou; Tanto, que a deos alheio Falso sacrificou. Se muito soube e teve, muito errou. Passeando, os segredos da Sophia, Do vil Eunuco Hermia Aras ergueo, que aos deoses só devia. Doe-se a perpétua fama, E grita qu'he culpado: Da lesa divindade he accusado. Ja foge donde habita; Ja paga a culpa enorme com destêrro. Mas, oh grande desdita! Bem mostra tamanho êrro Que doctos corações não são de ferro. Antes na altiva mente, No subtil sangue e engenho mais perfeito Ha mais conveniente E conforme sogeito, Onde s'imprima o brando e doce affeito. Camões II. 25 25 O DE XI. Naquelle tempo brando Em que se vê do mundo a formosura, De seu trabalho está, formosa e pura, Do mancebo Peleo d'hum duro affeito. Lhe havia ja fugido a bella Nympha, Noto irado revolve a clara lympha, Serras no mar erguendo, Que os cumes das da terra vão lambendo. Esperava o mancebo, Com a profunda dor que n'alma sente, Hum dia em que ja Phebo Começava a mostrar-se ao mundo ardente, Soltando as tranças d'ouro, Em que Clicie d'amor faz seu thesouro. Era no mez que Apolo Entre os irmãos celestes passa o tempo: O vento enfreia Eolo, Para que o deleitoso passatempo Seja quieto e mudo; Que a tudo Amor obriga, e vence tudo. Onde o cego menino Faz que os humanos crêão que he divino: Quando a formosa Nympha, Com todo o ajuntamento venerando, Na crystallina lympha O corpo crystallino está lavando; O qual nas ágoas vendo, Nelle, alegre de o ver, s'está revendo: O peito diamantino, Em cuja branca teta Amor se cria; O gesto peregrino, Cuja presença torna a noite em dia; A graciosa boca Que a Amor com seus amores mais provoca; Os rubins graciosos; As pérolas qu'escondem vivas rosas Dos jardins deleitosos, Que o ceo plantou em faces tão formosas; O transparente collo, Que ciumes a Daphne faz d'Apollo; O subtil mantimento Dos olhos, cuja vista a Amor cegou; Glorioso, nunca delles se apartou, Pois elles de contino Nas meninas o trazem por menino; Os fios derramados Daquelle ouro que o peito mais cobiça, Donde Amor enredados Os corações humanos traz e atiça, E donde com desejo Mais ardente começa a ser sobejo. Que de Neptuno estava aconselhado, Em tão bella figura trasladado, Porque Amor logo a falla lhe tirou. Quem tanto mal de longe lhe fazia, Porque de puro amor, Amor não via: Vio-se assi cego e mudo Por a força d'Amor que póde tudo. Agora s'apparelha Para a batalha; agora remettendo; Agora s'aconselha; Agora vai; agora está tremendo; Quando ja de Cupido Com nova setta o peito vio ferido. Remette o moço logo Para ond'estava a chamma sem socêgo; E co'o sobejo fogo Quanto mais perto estava, então mais cego: E cego, e co'hum suspiro, Na formosa donzella emprega o tiro. Vingado assi Peleo, Nasceo deste amoroso ajuntamento O forte Larisseo, Destruição do Phrygio pensamento; Que, por não ser ferido, Foi nas ágoas Estygias submergido. |