de exemplos, que a Historia nos offerece, póde descobrir e combinar meios que honrem a humanidade, e refutem as idéas de alguns escriptores, aliás respeitaveis, que, desesperando da civilisação dos indigenas, aconselham a sua total destruição. Não podemos lèr sem magoa o que tem escripto, e até mesmo praticado muitas pessoas, que assim tem declarado guerra de exterminio aos pobres indigenas ; e ainda que a violencia os tenha feito retroceder ás brenbas e sertões, muito diminuidos em suas tribus, com tudo ainda restam indigenas bastantes para se lembrarem de que são seus declarados inimigos os declarados inimigos os que lhes roubaram o paiz e a liberdade, e que abusando da sua simpleza, lhes pagaram os serviços e a hospedagem com máos tratamentos, perfidias, e morte. Nas suas festas, em certas estações do anno, elles sabem recordar em canticos os motivos de sua aversão aos invasores de eu paiz. Faltos de escripturas, mas não privados de memoria, valem-se desta tradição oral para passarem a seus filhos e a seus netos sentimentos de vingança que nunca perdem; e se a nossa força offerece sufficiente barreira, nos logares povoados, á sua brutal inundação, ainda assim ella não póde valer ás fazendas disseminadas, que por muitas vezes tem sido pasto de sua furiosa vingança. Eis pois um motivo assaz poderoso para se cuidar afincadamente em se destruir o principal obstaculo á civilisação dos Indios; elle consiste nas justas desconfianças que os nossos ambiciosos predecessores plantaram nos corações de taes homens, podendo dizer-se que elles tem sido mais religiosos em cumprir as suas promessas e allianças, do que nós que os temos quasi sempre considerado ou como féras, ou como homens só creados para nos servirem de bestas de carga. Nom vos seja pesado que eu ainda vos lembre a este respeito o que diz o grande Padre Antonio Vieira, e que servirá agora de confirmar a minha opinião sobre a urgente necessidade de se dissipar a funesta desconfiança, em que vivem os indigenas para comnosco, operação esta que bem se póde conseguir pela cathequese« Em o dia de Natal (relata o grande Vieira << na carta ha pouco mencionada) do mesmo anno de 1658 « despachou o Padre dous Indios principaes, com uma carta ༥ << patente sua, a todas as Nações dos Nheengaibas, na qual lhes segurava, que por beneficio da nova lei de V. << Magestade, que elle fora procurar ao Reino, se tinham <«< já acabado para sempre os captiveiros injustos, e todos « os outros aggravos que lhes faziam os Portuguezes; e « que em confiança desta sua palavra e promessa, fi« cava esperando por elles, ou por recado seu, para ir ás << suas terras; e que em tudo o mais dessem credito ao « que em seu nome lhes diriam os portadores daquelle << papel. Partiram os embaixadores, que tambem eram de «Nação Nheengaibas, e partiram como quem ia ao sa« crificio (tanto era o horror que tinham concebido da fe<< reza daquellas Nações, até os de seu proprio sangue), «<e assim se despediram, dizendo, que se até o fim da lua << seguinte não tornassem, os tivessem por mortos ou cap<«<tivos. Cresceo, e minguou a lua aprasada, e entrou outra « de novo, e já antes deste termo tinham profetizado o << máu successo todos os homens antigos e experimen«tados d'esta conquista, que nunca prometteram bom effeito <«<< a esta embaixada; mas provou Deus que valem pouco « os discursos humanos onde a obra é de sua providencia. « Em dia de Cinza, quando já não se esperavam, entra«ram pelo collegio da companhia os dous embaixadores. a vivos, e mui contentes, trazendo comsigo sele princi« paes Nheengaibas, acompanhados de muitos outros In dios das mesmas nações. Foram recebidos com as de<< monstrações de alegria, e applauso que se devia a taes « hospedes, os quaes depois de um comprido arrazoado, « em que desculpavam a continuação da guerra passada, << lançando toda a culpa, como era verdade, á pouca fé, «e razão que lhe tinham guardado os Portuguezes, con«< cluiram dizendo assim: mas depois que vimos em nossas << terras o papel do Padre grande, de que já nos tinha « chegado fama, que por amor de nós, e da outra gente << da nossa pelle, se tinha arriscado ás ondas no mar alto, «<e alcançado de El-Rei para todos nós as cousas boas : « posto que não entendemos o que dizia o dito papel « mais que pela relação destes nossos parentes, logo no << mesmo ponto lhe demos tão inteiro credito, que esque«cidos totalmente de todos os aggravos dos Portuguezes, « nos vimos aqui metter entre suas mãos, e nas bocas das « suas peças d'artilharia, sabendo de certo que debaixo da « mão dos Padres, de quem já de hoje adiante nos cha« mamos filhos, nao haverá quem nos faça mal. Com estas « razões lão pouco barbaras desmentiram os Nheengaibas «a opinião, que se tinha de sua fereza e barbaria, e « se estava vendo nas palavras, nos gestos, nas acções e « affectos, com que fallavam, o coração, e a verdade do <«< que diziam. Queria o Padre logo partir com elles a suas << terras; mas responderam com cortezia não esperada que « elles até aquelle tempo viviam como animaes do mato « debaixo das arvores, que lhes dessemos licença para que « logo fos em descer uma aldêa para a beira do ric, e « que depois que tivessem edificado casas, e Igreja, em « que receber ao Padre, então o viriam buscar muitos mais <«<em numero, para que fosse acompanhado como con<< vinha, sinalando nomeadamente que seria para o S. « João, nome conhecido entre estes gentios, pelo qual a distinguem o inverno da primavera. Assim o promette«ram, ainda mal cridos, os Nheengaibas, e assim o cum<«< priram ponctualmente; porque chegaram ás aldeas do « Pará cinco dias antes da festa de S. João com dezesete « canôas, que com treze da nação dos Combocas, que <«< tambem são da mesma ilha, faziam o numero de trinta ; «<e nellas outros tantos principaes acompanhados de tanta « e boa gente, que a fortaleza, e cidade se pôz secreta Omitindo, por brevidade, outras muitas reflexões interessantes do mesmo zeloso Missionario, julgo dever citar ainda um facto acontecido com elle, e que bem claramente prova que em quanto não formos de boa fé para com os Indios, e em quanto não cumprirmos religiosamente as promessas de nossas allianças, e os preceitos de tantas. leis em beneficio dos Indios, não dissiparemos a fatal desconfiança em que vivem, e que os faz estar sempre aparelhados para se vingarem de tantas perfidias nossas. O facto, que vou transcrever, falla bem claramente em abono do que digo, e é tambem extrahido da mencionada carta do grande Padre Antouio Vieira. « Depois da missa, < assim revestido nos ornamentos sacerdotaes, fez o Padre ་ ་ « uma pratica a todos, em que lhes declarou pelos in<«<terpretes a dignidade do logar em que estavam, e a « obrigação que tinhan de responder com limpo cora<«ção, e sem engano a tudo o que lhes fosse pergun«tado, e de o guardar inviolavelmente depois de pro« mettido. E logo fez perguntar a cada um dos princi« paes, se queriam receber a fé do verdadeiro Deus, e ser vassallos de El-Rei de Portugal, assim como o são <<< os Portuguezes, e os outros Indios das Nações Christãas <«<e avassalladas, cujos principaes estavam presentes : decla« rando-lhes juntamente, que a obrigação de vassallos era «haverem de obedecer em tudo ás ordens de S. Mages«lade, e ser sujeitos a suas leis, e ter paz perpetua e « inviolavel com todos os vassallos do mesmo Senhor, sendo a amigos de todos os seus amigos, e inimigos de todos seus <«< inimigos, para que nesta fórma gozassem livre e se« guramente de todos os bens, commodidades, e privi<< legios, que pela ultima lei do anno de 1655 eram con« cedidas por S. Magestade aos Indios deste estado. A « tudo responderam todos conformemente que sim; e só « um principal chamado Piyé, o mais entendido de todos « disse, que não queria prometter aquillo. E como ficassem << os circumstantes suspensos na differença não esperada desta « resposta, continuou dizendo que as perguntas, e as a praticas que o Padre lhes fazia, que as fizesse aos Por« tuguezes, e não a elles, porque elles sempre foram fieis « a El-Rei, e sempre o reconheceram por seu Senhor d'esde o principio desta conquista, e sempre foram ami« gos e servidores dos Portuguezes, e que se esta ami«zade, e obediencia se quebrou e interrompeu, fóra por « parte dos Portuguezes, e não pela sua; assim que os « Portuguezes eram os que agora haviam de fazer, ou « refazer as suas promessus, pois as tinham quebrado tantas « vezes, e não elle, e os seus, que sempre as guardaram. «Foi festejada a razão do barbaro, e agradecido o termo « com que qualificava sua fidelidade; e logo o Principal, << que tinha o primeiro logar, se chegou ao altar onde « estava o Padre, e lançando o arco e frechas a seus « pés, posto de joelhos, e com as mãos levantadas, e metti« das entre as mãos do Padre, jurou d'esta maneira - Eu ་ ABRIL. 2 ་ « fulano, Principal de tal nação, em meu nome, e de todos « meus subditos e descendentes, prometto a Deus, e a « El-Rei de Portugal a fé de Nosso Senhor Jesu Christo, do «ser (como já sou de hoje em diante) vassallo de S. Magestade, e de ter perpetua paz com os Portuguezes, sendo amigo de todos seus amigos, e inimigo de todos « seus inimigos, c me obrigo de assim o guardar, e cuma prir inteiramente para sempre. Dito isto, beijou a mão « do Padre, de quem recebeo a benção, e foram con«tinuando os de mais Principaes por sua ordem na mesma <«< fórma. Acabado o juramento, vieram todos pela mesma << ordem abraçar aos Padres, depois aos Portugnezes, e « ultimamente aos principaes das Nações Christãas, com os <«< quaes tambem tinham até então & mesma guerra, quo « com os Portuguezes: e era cousa muito para dar graças <«< a Deus, ver os extremos de alegria, e verdadeira ami« zade, com que davam e recebiam estes abraços, e as cousas « que a sen modo diziam entre elles- » Não se Jiga, porem, que só aos Jesuitas foi dado pela Providencia o firmar na opinião dos indigenas a confiança, que deviam ter na cathequese, porque fora isso offender ao zêlo, e negar o merito dos Carmelitas, Franciscanos, e Mercenarios, que tanto se distinguiram nas Missões do Brasil, das quaes ainda restam gloriosos monumentos nos sertões do Amazonas, do Maranhão, e de outras muitas Provincias. Tambem não foi só nos primeiros duzentos annos da descoberta de Santa Cruz-que aproveitou o systema de civilizar os Indios por meio da cathequese, sem o emprego das armas, que sempre teve pessimos resultados; porque longe de extirpar a justa desconfiança dos indigenas, e attemperar os sentimentos de vingança, accendiam muito mais os odios, provocando reacções, que nonca deixavam do apparecer em tempo opportuno, e em logares desprevenidos. Vem a proposito o que escrevera o sabio Bispo de Pernambuco, nosso patricio, D. José Joaquim da Cunha d'Azeredo Coutinho, no anno de 1804, dando contas ao Principe Regente D. João, do feliz resultado de uma sua cathequese na Provincia de Pernambuco. Apresentarei um extracto da sua conta &o Regente, para maior clareza da minha opinião. |