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Os livros que haviam pertencido a Alfredo Troni foram cedidos gratuitamente ao município pelos seus herdeiros e postos à disposição da Câmara Municipal de Luanda no ano de 1913, segundo consta da acta da sessão camarária de 12 de Julho de 1913.

Durante cêrca de dez anos esteve a livraria de Alfredo Troni à mercê de baratas, traças, etc. e, por vezes, à disposição de alguns indivíduos pouco menos que iletrados, mas que gostavam de coleccionar livros sonegados a espólios mal acautelados.

A pessoas crescidas em anos ouvi dizer que a livraria de Troni era constituída pelo dôbro, senão mais, dos volumes entregues ao município pelo mandatário de seus herdeiros. Ora, sabendo-se que são cêrca de 3.300 volumes (muitos deles considerados raridades bibliográficas) os que pertenceram a Troni e se encontram na biblioteca municipal, se pode imaginar que espléndida livraria seria a de Alfredo Troni, à data do falecimento do antigo advogado e jornalista de Luanda.

Havia quem afirmasse (e eu o ouvi a pessoas idosas da terra, há aproximadamente trinta anos) que o dr. Alfredo Troni, em repetidas conversas com amigos, teria manifestado o desejo de que, depois de sua morte, a livraria dele fôsse entregue ao município de Luanda. O procedimento dos herdeiros do bacharel Alfredo Troni foi talvez inspirado no desejo paterno.

Se assim foi, como parece ter sido, explicação não encontro para que durante alguns anos a livraria do dr. Troni ficasse, como ficou, retida. em poder de pessoas estranhas à família dele, até o ano de 1913, quando por sinal já não existia o filho de Troni, mas apenas a filha, e esta mesma então residente na Metrópole, de onde nunca mais voltou à província de Angola.

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Alfredo Troni tinha muita e variada leitura. Devia ser criatura dotada de cultura geral, a julgar pelos livros que possuia, alguns deles anotara e frequentemente citava em trabalhos forenses e até em vulgares artigos de jornais.

O dr. Troni foi colaborador, entre outros, do periódico local O Cruzeiro do Sul e fundou e dirigiu na capital de Angola estes periódicos: Jornal de Loanda, Mukuarimi e Os Concelhos de Leste. O dr. Troni foi colaborador de vários jornais políticos de Lisboa, em correspondências remetidas de Luanda.

Em 1893 se compôs e imprimiu na «Typographia do Mukuarimi» o opúsculo de Alfredo Troni, intitulado Ao Público, in-8.0 francês de 20 páginas. Elucidam bem da natureza do opúsculo as palavras seguintes:

«Tenho sido muitas vezes injuriado pela imprensa. Nas lutas da política provincial respondi aos doestos consoante sabia, e as injúrias à minha pessoa desprezava-as, conforme reputava os seus autores insignificantes ou doentes. Convencido de que um dos meus difamadores, que me chamou envenenador (eu... envenenador!) não era senão um nevrópata e epiléptico, deixei-o com a sua folia, de que, felizmente, segundo me consta, está melhor, senão curado de todo.

Tive porém a infelicidade de ser injuriado pelo juiz de Direito da 1.a vara desta comarca, o bacharel Manuel Francisco Leitão, nos autos

de um agravo que interpus para a Relação de Luanda de um despacho proferido em processo de execução hipotecária, em que era exequente a sucursal de Banco Nacional Ultramarino e executado o casal do falecido cirurgião-mór reformado da província, José Baptista de Oliveira. E como as ofensas não só me feriam, mas também a memória de meu pai, entendi desforçar-me e, depois de pesar a sangue frio as circunstâncias que se davam, resolvi requerer corpo de delito para o chamar à responsabilidade perante o tribunal da Relação.

Se as injúrias, que me foram dirigidas, não fôssem escritas pelo juiz de Direito em um processo e sim por um fulano, v. g. o sr. Manuel Francisco, em um papel qualquer, eu dar-lhe-ia o destino que costumo dar aos impressos inúteis ; mas escritas pela entidade que veste uma beca e que preside ao tribunal de 1.a instância da capital da província, era do meu dever, por dignidade, reclamar o respectivo correctivo que o código penal inflige a tais delinquentes. Eis o motivo por que requeri o corpo de delito e por que vou chamar o juiz Leitão aos tribunais.

Tem a ofensa o carácter de publicidade e por isso é vedada a prova dos factos ao réu ;- mas como não desejo que se suponha que segui aquele meio de desfôrço pelo motivo de recear que os factos imputados viessem a lume, faço esta publicação contando esses mesmos factos e elucidando o público, para fazer o seu juizo.

Deixei correr tempo antes de apresentar ao público esta declaração, receando que a minha justa indignação apaixonasse as minhas frases, tornando-as incorrectas.

Parece-me que tenho já o sangue frio suficiente para escrever sem

paixão».

Alfredo Troni foi político influente na província de Angola e destacado orientador da opinião pública entre colonos e africanos.

Quando de sua eleição de deputado por Angola se publicou no Boletim Oficial o seguinte ofício, datado de 3 de Fevereiro de 1878, que o presidente da assembleia do apuramiento eleitoral dirigira ao governador geral da província:

«Tenho a honra de participar a V.a Ex.a, na qualidade de presidente da assembléia do apuramento do deputado às côrtes por esta província, que no desempenho do dever que a lei me impõe, acabo de proclamar perante a assembléia, a que presido, deputado às côrtes por esta província de Angola, o dr. Alfredo Troni.

Que sendo o número total das listas entradas nas urnas das diversas assembléias primárias eleitorais o de 5.448, o dr. Alfredo Troni obteve 4.928 votos.

Que amanhã, pelas 5 horas da tarde, tem lugar o Te-Deum ordenado na lei, o qual se realizará na igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde provisòriamente funciona o cabido da Sé.

Felicito a província pela escolha do seu advogado perante o parlamento e perante os poderes públicos.

Se o deputado dr. Alfredo Troni não proceder de modo que todos os habitantes da província bemdigam dos eleitores que tão livremente o elegeram, então só resta, no futuro, abandonar a urna, quando haja nova eleição.

Porém, creio firmemente que o seu proceder, como deputado, será tal que, nas futuras eleições, será o escolhido, o reeleito, por então já se terem colhido os resultados de sua inteligência e sensata iniciativa, filha

do perfeito conhecimento que tem das colónias, da sua robusta inteligência, da sua actividade, da variadíssima leitura que possui e aturado estudo que faz.

Será decerto isto o que V.a Ex.a desejará ardentemente, como auxiliar indispensável para o seu govêrno; é decerto êste o desejo veementíssimo de todos os habitantes desta riquíssima província». (7)

Foi essa eleição anulada pelo governo. Em Julho de 1878 resolveu Alfredo Troni fixar «indefinidamente a sua residência nesta província», segundo declaração que êle publicara em Jornal de Loanda de 28 daquele mês e do mesmo ano. Por decreto de 4 de Dezembro de 1878 foi o juiz de Direito Alfredo Troni colocado no quadro, sem exercício nem vencimento de ordenado ou antiguidade.

*

Se como advogado era distinto, profissionalmente honrado e zeloso na defesa dos interesses de seus constituintes, como político foi homem do seu tempo, que não evitava conflitos pessoais e políticos, nem campanhas jornalísticas-e conservou-se naqueles e nestas com aprumo moral e intelectual.

Um dos mais violentos conflitos políticos, que tivera, o sustentou com o coronel de infantaria Vasco Guedes de Carvalho e Meneses, governador geral de Angola.

Em correspondência para o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar informou Vasco Guedes que o dr. Alfredo Troni o votara «ao seu ódio e à sua execração...».

Talvez houvesse exagêro de Vasco Guedes ao escrever essas palavras. O dr. Troni não era por índole rancoroso. Nessa época o cidadão português tinha qualquer ideal de homem livre e batia-se por êle, geralmente, com entusiasmo, à mistura, é certo, de certas explosões sentimentais, que se traduziam por vezes em campanhas jornalísticas deploráveis. Teve Troni, realmente, exageros políticos e jornalísticos, cujos conflitos não invadiram, contudo, a vida privada de ninguém. Mas Troni nunca foi rancoroso. Passada a tormenta política ou jornalística, suas faculdades boas de cidadão e de advogado se reafirmavam em extremos de simpatia e generosidade, que fizeram dele habitante muito popular de Luanda e geralmente querido de europeus e africanos em toda a província de Angola. O dr. Troni empobreceu por falta de espírito utilitário, mas sua generosidade o levou muitas vezes a comprar passagens em navios, pois que à sua custa fez repatriar numerosos colonos pobres. Generoso foi sempre Troni para todos que recorriam à sua competência de advogado.

e aos seus haveres.

Foi Alfredo Troni (em 1883, por exemplo) um dos maiores quarenta contribuintes do concelho de Luanda e, em ordem de importância, figurou em quinto lugar. Mas quando o dr. Alfredo Troni morreu, todos seus bens de raiz estavam irremediàvelmente comprometidos por hipotecas ruinosas. O dr. Alfredo Troni e sua mulher D. Adelaide de Azevedo Troni possuiram no concelho de Cazengo a fazenda denominada Hocco, que

(7)—Vid. Boletim Official de 16 de Fevereiro de 1878.

também conhecida foi pela designação de Santa Isabel. Com a venda que de metade dessa fazenda fizeram Troni e sua mulher, em 1 de Junho de 1884, a António Gualdino Carreira, com êste constituíram uma sociedade. agrícola e comercial que girou sob a firma Troni & Carreira, para a exploração da sobredita fazenda.

Por escritura de 5 de Março de 1894 foi dissolvida essa sociedade. (subsistindo a venda da metade da dita fazenda a Carreira) e constituíram nova sociedade agrícola e comercial (Carreira & Companhia) em que entrou a fazenda citada e outra denominada de Carianga, a qual também já pertencia, em partes iguais, a Carreira e a Troni.

Por escritura de 24 de Outubro de 1896 foi dissolvida a segunda sociedade, vendendo Alfredo Troni, a António Gualdino Carreira, as partes que êle possuia nas ditas duas propriedades.

*

O dr. Alfredo Troni era considerado homem distinto e espirituoso, que aparecia frequentemente em festas de beneficiência ou em reuniões particulares, onde exibia sortes de prestidigitação, em que era artísta consumado. A pessoas coevas de Troni ouvi dizer que êle chegou a rivalizar com verdadeiros profissionais dessa arte. A semelhantes habilidades de Troni se fizeram largas referências em vários periódicos da época, por ocasião de neles se publicarem noticiários das festas de que Troni comparticipara.

Quando estudante em Coimbra, já ali Alfredo Troni se revelou publicamente como prestidigitador de muita habilidade, segundo o testemunho do notável poeta Antero de Quental, em correspondência de Coimbra, datada de 26 de Fevereiro de 1865, para o periódico. O Século XIX, de Penafiel, de 1 de Março daquele ano.

Dessa correspondência de Antero de Quental se transcreve o seguinte:

«Dois prestidigitadores, até académicos também, e moços de grande habilidade, se vieram associar a êste movimento e mostraram publicamente na noite de 5.a feira passada o quanto valiam os seus merecimentos e aquela arte.

Foi o caso que nessa noite deu um concêrto de tibia pastoris o grande artista italiano José Pico.

E a êste respeito, como não sei fazer críticas, direi só que, depois de o ouvir, exclamei como certo lavrador do meu conhecimento ao ver o mar pela primeira vez :-«Isto sempre faz pasmar a gente!»

Nesta frase penso eu resumir tudo quanto se pode sentir ao ver como o grande artista transforma uma tibia, verdadeiramente pastoril e tão pequena que cabe no bôlso de um colete, num instrumento de onde êle tira os trechos de música mais elevada. E não queremos com isto dizer que a música recitada por aquela tibia atinge toda a sua elevação, e sentimento; querendo-me parecer que se ressente do pastoril-do cheiro do rosmaninho - senão umas vezes agreste, outras um pouco monótona.

É todavia admirável. E onde nada disto se sentia, era no Carnaval de Veneza, que nos deixou maravilhados; só desejávamos ouvir José Pico ao desafio com um rouxinol.

Voltando ao nosso caso. Os intervalos foram preenchidos pelos prestidigitadores de que acima falamos. Um era o filho do exm.o sr. dr. Troni, o outro o sr. Vasconcelos, conhecido entre os seus amigos pelo nome de Mata-Carochas.

O sr. Troni encantou a platéia e depois mistificou à sua vontade. Encantou com os seus modos admiràvelmente delicados e ingenuamente naturais, e mistificou depois com engraçadas sortes de empalmação e cartomância, que desempenhou com rara habilidade». (8)

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A vida política do dr. Alfredo Troni em Angola foi abundante em diversos episódios. Pondo de parte vários casos, que vieram ao meu conhecimento pela tradição oral em Luanda, limito-me a apontar, documentalmente, o que se segue e algo ilustra a vida política de Troni.

Certa vez foi eleito deputado, pelo primeiro círculo da província de Angola, alguém que não chegara a usar da palavra no parlamento. Aproveitando essa circunstância, Alfredo Troni quis fazer espírito à custa do adversário político, conseguindo-o de maneira original.

Na «Typographia do Mukuarimi» se compôs e imprimiu um volume in-8.0 francês de VI+ 100 páginas. No frontispício do volume se lê o que adiante vai fotografado; ao público fez Alfredo Troni a apresentação dos «discursos»... do deputado silencioso; em cada uma das páginas (de 1 a 99) está impressa a palavra NADA ao centro e, na parte superior de cada página, estes dizeres : DISCURSOS DO DEPUTADO ALFREDO RIBEIRO ; na página 100 repetem-se os mesmos dizeres acrescidos dêstes: «Aqui terminam os gloriosos discursos que a favor do 1.o círculo da província. de Angola pronunciou o seu deputado Alfredo Ribeiro».

(8) — Vid. Antero de Quental, Prosas (Coimbra, 1923) vol. I, p. 227 e 228.

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