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CAPITULO VIII

CHRONISTAS E HISTORIADORES

Elementos da historia: os agiologios, as constituições synodaes, os foraes e a tradição oral.-Historiadores antes da monarchia: Paulo Osorio, Aprigio, Idacio, e outros: a Historia dos Martyres de Marrocos e os Estatutos da Ordem de Christo.— A tradição historica conservada pelo culto dos principios religiosos e apego ás lembranças da patria.—Os judeus e o periodo bysantino: Rabbi Abner escrevendo as Batalhas de Deus. -O amor da investigação historica recolhendo-se nos mosteiros: serviços á historia feitos pelos monges: valioso subsidio de historia ecclesiastica para a historia geral: Acta Sanctorum, Gallia Christiana, Arte de verificar as Actas.-Primeiros chronistas: Fernão Lopes e os fortes elementos constituidores da nossa nácionalidade e independencia. -Frei Nicolau de Santa Maria, João Camello e Dom Pedro Alfarde: os priores de Santa Cruz de Coimbra.-Lucena e os seus escriptos: Azurara, Ruy de Pina e Garcia de Rezende: a critica a respeito d'estes chronistas: João de Barros, o Abbade Correia da Serra e o sr. Alexandre Herculano.- Verdade da historia seguida por Fernão Lopes: este chronista e Froissart: -Da historia escripta á luz dos grandes successos nacionaes e da chronica reduzida á biographia dos reis: Garcia de Rezende, modélo d'este genero. Damião de Goes, Bernardo de Brito, os Brandões e outros historiadores. Os successos da India: João de Barros e Diogo do Couto. -Historia ecclesiastica: chronicas monasticas.

A historia, em todas as suas manifestações, constitue tão importante ramo em a nossa litteratura, que nos parece conveniente dedicar-lhe um capitulo especial, pois só assim poderemos fazer sobresahir a phisionomia de cada um dos escriptores notaveis, que se vota

ram á narrativa dos successos publicos ou mais peculiares dos differentes reinados, o que na corrente geral das causas e effeitos do desenvolvimento litterario, não poderiamos facilmente distinguir e caracterisar cabalmente.

Os agiologios imaginados pelo fervor religioso e abraçados pela crença popular, as narrativas legendarias e as vidas dos santos, investigadas pela piedade dos monges, os livros dos foraes e constituições dos bispados colligidos e ordenados pelo andamento das necessidades da organisação civil, tudo isto dispõe os primeiros passos, e ao mesmo tempo os primeiros elementos da nossa historia.

E' de todos estes materiaes que ella se organisa, e n'estas fontes vão procurar os nossos chronistas a verdade e authenticidade de suas investigações.

Não nomearemos agora aqui nem Paulo Osorio, natural de Braga, historiador assás gabado por Santo Agostinho; nem Aprigio, bispo pacence, escriptor distincto; nem San João, abbade e fundador de Valclara, auctor de um Chronicon; nem Idacio, bispo de Lamego e de Lugo, tambem auctor de uma Chronica, porque todos estes são anteriores á instituição da monarchia portugueza; mas para que se saiba que as origens da historia portugueza, mesmo antes de Fernão Lopes, já subsistiam em muitos codices, mais ou menos completos, basta citar a Historia dos martyres de Marrocos e os Estatutos da Ordem de Christo, obras, uma do bispo de Lisboa Dom Matheus, e a outra do confessor da rainha Santa Izabel. A verdade é que os conhecimentos litterarios e historicos, e até scientificos, não se perderam jamais, nem mesmo no seio da confusão das grandes luctas da idade-média. Formam como um fio, que por vezes se adelgaça, se enreda, mas que nunca se quebra ou termina. São como uma especie de tradição que certas classes mais cultivadas e tambem certas raças foram legando umas ás outras, e que foi conservada como um deposito sagrado. E effectivamente tal se póde conside

rar a dedicação com que os judeus se davam ás sciencias. Foi como um culto que se poderia dizer estreitamente ligado ás suas tradições de familia, e que, em muitos pontos, se identificavam com as suas crenças religiosas. Aos judeus portuguezes e hispanhoes devemos os primeiros progressos em philosophia, botanica, medicina, astronomia e cosmographia. 1 Costumavam elles, desde o começo da monarchia, e seus irmãos de Hispanha, como já dissemos n'outra parte d'este Curso, irem estudar ás principaes synagogas do Oriente, e de lá, trouxeram o variado e profundo saber em sciencias exatas e naturaes com que muito utilisámos. 2 E' a um judeu convertido, Rabbi Abner, a quem a infanta Dona Branca, filha de Dom Affonso III, incumbe escrever uma obra, e nada menos que as Batalhas de Deus. São os judeus, em todo o decurso da idade-média, que conservam o monopolio da industria e das artes. E é mesmo por entre elles que ainda vemos correr esse veio de erudição latina, que a queda do Imperio romano não estancara inteiramente, e que mais ou menos se perpetuára atravez de todas as alternativas e rudeza d'aquellas eras. Todo o periodo da historia litteraria, a que, com propriedade, poderemos appellidar bysantino, é sustentado por individuos d'esta raça; e não tanto em Portugal e Hispanha, como n'outros paizes da Europa, e principalmente na Allemanha: o drama intitulado a Sahida do Egypto, deve-se á penna do judeu Ezechiel. 3

Mas não é senão no recolhimento de alguns mosteiros, verdadeiro refugio das lettras perseguidas ou despresadas, que se encontra desde o seculo VII até ao XI. um pequeno numero de homens fieis aos estudos da antiga latinidade, e estes homens são os monges. Decerto que o seu saber era irregular e confuso, como as

1 Ribeiro dos Santos. Mem. de Litter. de Acad. tom. VIII, parte I.

2 Mem. da Litterat. hebraica, por frei Fortunato de S. Boaventura, nas Memor. da Acad. idem.

3 Frei Fortunato de S. Boaventura, loc. cit.

idéas do tempo em que viviam; no emtanto muito se lhes deve; e aquelles que pensam que o seu trabalho se resumia a rasparem os velhos papyros da antiguidade, onde os talentos do Lacio e da Grecia haviam depositado monumentos de poesia, para ahi lançarem os mylagres absurdos e muitas vezes impios de algumas legendas monasticas, illudem-se, porque não poucos d'elles dispozeram solidos fundamentos de historia ecclesiastica, e nas Constituições de seus bispados recolheram e prepararam, sem o saberem, os capitulos mais verdadeiros da historia civil e social das nossas eras antigas, que, sem as suas vigilias e perseverança, nos appareceria hoje incompleta e inutilisada. Os monges de San Mauro apresentam-nos testemunhos irrefragaveis, e ao mesmo tempo eloquentes d'esta verdade. Sem elles não possuiriamos hoje esses magnificos subsidios para a historia civil e ecclesiastica, chamados Gallia Christiana, Acta Sanctorum, o Spicilegium, a Arte de verificar as actis, e Diplomatica, e outras locubrações de que tanto se tem aproveitado depois os investigadores mais eruditos.

O pae da historia nacional é Fernão Lopes; e foi elle o nosso primeiro chronista nomeado por Dom Duarte, logo mezes depois de subir ao throno, em 1433, dando-lhe o carrego de poer em caronyca as estoiras dos reys, que antygamente em Portuyal foram, como resa a carta da sua nomeação.

Antes de Fernão Lopes nada subsistia de regular, e methodico, nem na aggregação de uma mesma ordem de successos, nem no seguimento chronologico da narrativa. Subsistiam algumas memorias dispersas nos archivos dos mosteiros, ou referencias truncadas na tradição popular, e rarissimos apontamentos dos factos publicos, registados pela curiosidade de um ou outro monge.

Em Santa Clara de Coimbra existia um manuscripto, obra, ao que parece, do seculo XIV, em que vem referidos, porem mui de longe, os successos mais singu

lares dos reinados de Dom Affonso Henriques, de Dom Sancho I e de Dom Affonso II. O sr. Alexandre Herculano é de opinião que estas foram as appellidadas chronicas que Acenheiro colligiu nos começos do seculo XVI, e que serviram de base a Ruy de Pina e Duarte Galvão para os trabalhos historicos que depois emprehenderam. Duarte Nunes de Leão tambem se apropriou decerto das mesmas memorias ou compendios dos successos publicos, como lhes chama o nosso historiador, nas chronicas que escreveu ácêrca dos primeiros reinados.

Mas além d'estes documentos parece fóra de duvida ter subsistido mais alguma cousa escripta, porque, na carta de nomeação de Fernão Lopes mencionam-se as estoiras dos antigos reis, mui distinctamente dos feitos de Dom João I. Todavia, se existiu, perdeu-se ou sobreviveram apenas noticias tradicionaes e confusas, pois nenhum dos nossos chronistas e historiadores declarou haver encontrado esses antiquissimos escriptos, nem ainda mesmo chronistas monasticos, que foram os que mais rebuscaram os archivos de seus mosteiros, salvo frei Bernardo de Brito que descobriu noticias historicas e documentos, onde ninguem jamais presumiu poder achal-os. Mas todos sabem hoje o valor d'esses achados do bom do cisteriense que, ou por exuberancia de imaginação, nimia credulidade, ou desejos de elevar a nossa historia a condições mythologicas, vicio talvez da sua educação rigorosamente classica, mais fez d'ella uma fabula que narrativa sincera e verdadeira.

Frei Nicolau de Santa Maria 2 é que assevera, que o primeiro rei portuguez nomeára a João Camello, seu capellão, e prior claustral de Santa Cruz de Coimbra, para chronista-mór do reino, officio depois dado ao seu successor no priorado, Dom Pedro Alfarde, ficando de direito nos priores da mesma ordem. Até cita as cartas de nomeação e transcreve as datas, trasladando di1 Panorama, vol. II, anno 1838.

2 Chronica da Ord. dos Coneg. Regr. liv. IX, cap. IX.

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