mago não lhes soffria aquelle alimento, e muitas vezes o arrevessava, sendo que se folgavam tanto com as festas de sangue, faziam-n'o só por um sentimento de vingança tam entranhavel, que só com o ultimo sopro de vida se extinguia. Esta paixão infrene da vingança abafava até o sentimento do amor maternal, que de todos elles é porventura o mais poderoso. Se a companheira do captivo chegava a conceber, o ente desditoso que ella dava á luz, tomava o nome de filho do inimigo. (Cunhabira.) Como chegava a dous ou tres annos de idade, a viuva mãe o entregava a seus irmãos ou primos, que o matavam com as ceremonias do estylo, e não deixavam de presentear a mãe com seu quinhão de carniça. Não ha escriptor antigo que não atteste este costume espantoso, acrescentando que as mães que se não conformavam com elle, cahiam em grande deshonra e abjecção. Não obstante, vencia ás vezes a ternura maternal, e mulheres havia que se expunham a tudo para salvar o fructo das suas entranhas; mas estas, pelo que se conta, eram rarissimas. Acontecia tambem, como já o dissemos, que as vezes a rapariga ficava perdida de amores pelo captivo que lhe davam por esposo, e nesse caso o subtrahia à morte, fugindo com elle pelos maios. Mas em regra, o sentimento da vingança superava todos os mais, e segundo o dizer chão e simples de um antigo viajante-bem não era morto o prisioneiro, acudia a mulher arrepellando-se e gritando como uma carpideira, e posta ali «junto ao corpo, o borrifava com suas lagrimas amorosas, não sendo isso parte comtudo para que não fosse uma das primei«ras a trincar naquella carne. » A'vista destes espantosos costumes, será difficil ao leitor conceber na existente social dos tupinambás umas tantas virtudes, que aliás não florecem no mesmo grau entre povos muito mais adiantados em civilisação. O egoismo, por exemplo, chaga asquerosa da moderna sociedade, não havia entre os selvagens nome que o designasse, e mais as suas odiosas combinações. No meio das frequentes miserias da vida selvagem, nunca o fraco era desamparado, e o forte era sempre o primeiro que se resignava. Jamais houve chefe que, illudindo a propria consciencia, se apoderasse dos bens da terra, que eram propriedade commum da tribu inteira. Durante as fomes, participava o escravo do pouco que havia de parceria com o senhor. Sabida preconisada de todos foi sempre a boa fé dos tupinambás nas suas transacções, quer particulares, quer geraes, com as diversas nações com quem tractaram, e especialmente com a franceza. Mal conheciam o furto e o roubo, e não obstante a admiração que lhes causavam os artefactos europeus, que se lhes trazia para commercio, nunca tentaram apoderar-se delles pela astucia ou pela força, como estão sempre a fazer os habitantes do mar do sul. Talvez não haja exemplo de tractado que fizessem com os europeus, e a que faltassem; e se na historia das suas guerras bem averiguarmos os factos, hade ver-se que a causa real dos rompimentos foi sempre alguma infracção secreta aos seus principios de honra e religião. Esta fé observada nos tractados, guardavam-n'a tambem nas mais relações da vida, e os antigos escriptores attestam unanimes a grande união e boa cortezia que reinava entre elles, posto que algumas vezes mais de vinte familias se agasalhassem debaixo do mesmo tecto. FUNERAES. Neste rapido exame dos costumes de um grande povo, que desappareceu do sólo que dominava, só nos resta tractar da solemnidade dos funeraes. Terminemos com esta ceremonia a nossa narração, pois com ella tambem se põe termo a todas as cousas da vida. Os tupinambás, semelhantes nisto a tantos outros barbaros, só cuidavam nos seus doentes em quanto estes davam esperança de vida, sem que todavia lhes apressassem a morte, como soiam fazer os tapuyas. Ao expirar qualquer delles, punham-lhe na cabeça o seu diadema de pennas d'arara, untaram-n'o de mel, pentea vam-n'o e aparelhavam em summa com todos os seus ornatos e galas festivaes, e assim o expunham na maca que depois lhe servia de mortalha. Começava então um grande concerto de gritos e prantos entre os filhos e as mulheres que cercavam o defuncto. Qual lhe perguntava porque tam cedo deixára a terra; qual lhe deplorava a morte; qual lhe gabava a vida. «Nunca houvera, diziam, guerreiro tam brioso, pae tam benevolo, e esposo tam amoravel. Que caçador famoso, e que «frecheiro tam possante!» É de notar que se ha algum ponto em que todos os povos barbaros sejam conformes, é certamente na adopção desta fórmula, pois a encontramos em uma multidão delles, completamente estranhos uns aos outros, e até de raças diversas, sem mais variedade, que a que necessariamente lhes imprime a natureza do sólo e do clima. Entre os tupinambás estes prantos e lastimas arrematavam com um cantico religioso, em que se annunciava aos vivos uma maneira de paraiso ou terra de promissão, que demorava para lá das montanhas, logar de inefaveis deleites, para onde havia partido o defuncto, e onde todos se haviam emfim de avistar com elle. Ensinavam-n'o assim os caraibas como ponto de fé, de modo que aberta a cova pelo parente mais proximo, dispunha-se tambem a matalotagem necessaria pera a viagem do guerreiro. Ordinariamente abria-se a cova no mesmo logar em que elle expirava, e nesse caso enterrava-se o defuncto mesmo no meio da sua familia; outras vezes porém nas margens do Oceano, ou no coração da espessura, havendo sempre em tudo o maior cuidado e esmero. Dobrava-se então o corpo em dous, attitude estranha, que todavia se encontra na maior parte dos monumentos americanos, e involto na sua rede, o suspendiam no centro da cova por meio de estacas fincadas verticalmente, dispostas as cousas de modo que a terra não cahisse dentro desta especie de catacumbas. E junto da rede mortuaria, collocavam as frechas, o arco, o tacapé e ainda o maracá do guerreiro, e este ultimo talvez n'uma intenção religiosa. Mantinha-se fogo acceso junto do funebre jazigo, para afugentar Anhangá, o genio do mal, daquel les dilectos manes. Durante muitos dias seguidos, traziam-lhe peças de veação, fructas, e agua, que lhe punham em cuias e vasos de barro, como offerenda agradavel, e mettiam-lhe na mão seu cachimbo de folhas de palmeira bem servido de tabaco renovando-se as provisões até que rasoadamente se podesse suppor que a alma, tomando o vôo, havia emfim chegado ás regiões bem-aventuradas. Era então que dispunham uma especie de forro ou girau por cima da cova, o qual cobriam com ramas e terra, e deste geito ficava sepultado para todo sempre o guerreiro tupinambá, a que a mulher tinha de obrigação vir ali prantear por muitos dias ainda. Se a mulher é que fallecia, era de uso abrir-lhe a cova o proprio marido, e enterra-la. A donzella era enterrada pelo irmão, ou por algum parente dos mais moços. Os meninos, filhos dos chefes, mettiam-se dentro de uma jarra, que se enterrava na cabana de seus paes. Que diremos agora das tribus indianas que circulavam esta grande nação? se consultamos as narrações contemporaneas, é facil de ver que ellas participavam mais ou menos dos seus costumes, idéas religiosas, e superstições, sendo todavia inquestionavel que o foco da civilisação nascente permanecia no povo que era como cabeça das mais nações. As differenças que se notavam entre uns e outros, derivavam principalmente das localidades, da maior ou menor abundancia de certas producções, da maior ou menor distancia emfim entre certas raças, taes, por exemplo, como as do sul, e as do oeste. Mas estas variedades não eram tam pronunciadas, que nos obriguem a estabelecer aqui subdivisões mais extensas que as que já indicamos em outra parte. As analogias entre ellas eram tam fortes, que os antigos viajantes designavam ordinariamente muitas tribus por um só nome. Os tupiniquins, ou tupiaes, (tupinagés) os tamoyos, e os cahetés, se aproximavam muito dos tupinambás, bem que com elles trouxessem frequentes guerras; os carijós, mais visinhos das tribus agricolas dos guaranis, tambem conservavam analogias de habitos e linguagem com a grande nação, dado que os seus costumes fossem mais brandos, e por isso se alliassem mais facilmente com os europeus; os petigoares, classificados entre os tupis, se distinguiam pela sua inalteravel affeição para com os francezes. Já os goyanazes começavam a confundir-se com outras tribus, e os papanazes se dispunham para aquella guerra terrivel que tiveram com os tupiniquins e goaytakazes, e que veio a terminar com a sua inteira dispersão. Que diremos tambem dos tapuyas, repellidos para o interior, mas bem resolutos a nunca adandonarem as vastas campinas de Pernambuco, Ceará e Piauhy? Já nos primitivos tempos da conquista, começavam elles a vaguear por aquellas immensas solidões, obedecendo ás lugubres prophecias dos seus adevinhos, prefazendo quasi máu grado seu os ritos barbaros da sua religião, e dissipando no meio desta existencia agitada a tenue luz que parecia guia-los no principio da sua organisação social, até de todo cahirem outra vez em uma barbaria tam profunda, que quando appareceram alguns annos mais tarde com o nome de aymorés, os mesmos tupis, já tambem em começo de dissolução, os consideravam selvagens. Confessamo-lo agora de boamente, posto que o assumpto não deixe de ser interessante,-receamos fatigar o leitor, seguindo os diversos movimentos que o estabelecimento dos europeus imprimiu em todas as nações indianas. Veriamos aqui as differentes tribus que compunham uma nação, agglomerarem-se, para se extinguirem de todo, como os carijós e os patós, e ali, depois de deliberarem, no grande conselho, e com toda a gravidade indiana, os diversos interesses da nação, guiarem atravez das florestas até o deserto da Amazonia, onde alfim cuidaram achar um asylo seguro e impenetravel ás invasões dos europeus. |