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LER & TRESLER

Ι

CONVERSÃO E MORTE

DE JUNQUEIRO

O dia 7 de Julho de 1923, com setenta e três anos de idade incompletos, morreu

NR

em Lisboa o poeta Guerra Junqueiro, conhecido e amado em tôdas as Espanhas de Aquém e de Além-mar. E com êle desapareceu a última relíquia dessa pléiada admirável a que pertenciam Antero de Quental, João de Deus, Camilo, Ramalho, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, escritores geniais que no último quartel do século XIX fizeram do pequeno Portugal uma das grandes-potências do Espírito e magnificamente contribuíram, cada um a seu modo, para manter acesa a glória intelectual da Península Ibérica.

Ao contrário do seu mestre Vitor Hugo, que em vida publicou abundantíssima produção

e morreu deixando ainda inéditos uns poucos de volumes, pois se mantivera sempre fiel à norma de nulla dies sine linea, Guerra Junqueiro é, para todos aqueles que pessoalmente o conheceram, muito maior que a sua própria obra. Pode afirmar-se que nunca se sentou à banca para trabalhar com regularidade, como quem cumpre um dever ou exerce uma profissão. Fazia quási todos os seus versos na rua, passeando, e apontava-os a lápis, em quaisquer bocados de papel. E sendo hábil administrador das suas propriedades rurais e coleccionador espertíssimo de velhas preciosidades artísticas, com as quais pode dizer-se que constituiu e deixou ao morrer valiosa fortuna, Guerra Junqueiro prodigalizou durante toda a vida, em conversas e devaneios orais que se evaporaram e perderam, a maior riqueza que Deus lhe deu: o génio da expressão verbal, o inexcedido poder de síntese, que dava à sua conversa maravilhas de graça, de beleza e de vida.

Há muitos anos, em Paris, passeou Junqueiro durante mais de uma hora, pelas alamedas da grande cidade, com certo escritor francês comtemporâneo, dos mais estimados e justamente célebres. Dois dias depois verificou o nosso Poeta, com prazer e espanto, que o artigo com que aquele famoso prosador francês colaborava

essa semana no Figaro (ou no Temps?), era, sem citar o seu nome, reprodução textual de quanto êle próprio dissera na sua conversa com o... autor. E Junqueiro dizia com graça :

-Eu diteie êle embolsou os quinhentos francos...

O génio verbal de Junqueiro não o admirarão de-certo os que, com Pascal, detestam Cicero, acham que a verdadeira eloqüência « se ri da eloqüência», condenam les mots d'enflure, comparam os escritores de antíteses aos arquitectos de janelas fingidas por causa da simetria, e a tudo preferem o estilo natural · sem se lembrarem de que todo o estilo é natural, desde que se prove espontâneo e sincero, e de que o estilo ascético de Pascal é tão natural a Pascal, como o estilo sonoro de Junqueiro é natural a Junqueiro.

Também não podem admirar Junqueiro incondicionalmente os espíritos lógicos, os críticos e sociólogos profundos, como êsse lucidíssimo pensador português António Sérgio, que nos seus Ensaios escalpeliza implacàvelmente tôda a produção do Poeta, à luz da coerência e do equilíbrio das ideias, para concluir não sem razão que o talento verbal de Junqueiro lhe serve muitas vezes, não para exprimir o que pensa, mas para substituir o pensamento.

E vem a dar na mesma conclusão o que observa outro conhecido publicista, o sr. Alfredo Pimenta, quando compara Guerra Junqueiro com Antero de Quental:

« A obra de Antero é para ser dissecada e discutida. Quanto mais íntima, mais minu<<< ciosa fôr a dissecção, mais essa obra ganha em grandeza. A obra de Junqueiro é para ser lida «e ouvida dissecada e discutida, perde.»>

Tudo isto lembra naturalmente a definição que Paulo Bourget dava há quarenta anos, nos seus Ensaios de Psicologia contemporânea, a propósito de Baudelaire, daquilo a que chamava un style de décadence: aquele em que a unidade do livro se decompõe, para ceder à independência da página, em que a página se decompõe para ceder à independência da frase, e a frase cede ainda por sua vez à independência do vocábulo. Resta-nos, porém, saber se, mais que estilo de decadência, não será isto antes estilo de sensações, perfeitamente compatível com algum alto grau de florescência literária ou social, embora, como aliás pode suceder com o verso, ao que há de sensorial na palavra, à simples beleza musical ou plástica do vocábulo, seja por vezes sacrificada pelo artista a função

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