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Saibão que ja não mata a vida ausente.

Canção, neste destêrro viverás,
Voz nua e descoberta,

Até que o tempo em ecco te converta.

CANÇÃO VII

Manda-me Amor que cante docemente
O qu'elle ja em minh'alma tee impresso,
Com presupposto de desabafar-me;
E porque com meu mal seja contente,
Diz que o ser de tão lindos olhos preso,
Cantá-lo bastaria a contentar-me.
Este excellente modo d'enganar-me
Tomára eu só d'Amor por interèsse,
Se não s'arrependesse,

Com a pena o engenho escurecendo.

Porém a mais me atrevo,

Em virtude do gesto de qu'escrevo.
E s'he mais o que canto que o qu'entendo,
Invoco o lindo aspeito,

Que póde mais que Amor, em meu defeito.

Sem conhecer a Amor viver sohia,
Seu arco e seus enganos desprezando,
Quando vivendo delles me mantinha.
Hum Amor enganoso, que fingia,
Mil vontades alheias enganando,
Me fazia zombar de quem o tinha.

No Touro entrava Phebo, e Progne vinha;
O corno de Acheloo Flora entornava;

Quando o Amor soltava

Os fios d'ouro, as tranças encrespadas,
Ao doce vento esquivas;

Os olhos rutilando chammas vivas;
E as rosas entre a neve semeadas;
Co'o riso tão galante,

Que hum peito desfizera de diamante.

Hum não sei que suave respirando,
Causava hum admiravel, novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Alli as garrulas aves, levantando
Vozes não ordinarias em seu canto,
Como eu no meu desejo s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
D'inflammadas na yista linda e pura;
Florecia a verdura,

Que andando co'os divinos pés tocava;
Os ramos se baixavão,

Ou

Ou d'inveja das hervas que pizavão, porque tudo ant'ella se baixava. Não houve cousa, emfim,

Que não pasmasse della, e eu de mim.

Porque, quando vi dar entendimento
Ás cousas que o não tinhão, o temor
Me fez cuidar qu'effeito em mi faria.
Conheci-me não ter conhecimento:
Porém só nisto o tive, porque Amor
Mo deixou para ver o que podia.
Tanta vingança Amor de mi queria,
Que mudava a humana natureza
Nos montes, e a dureza

Delles em mi por troco traspassava.

Oh que gentil partido,

Trocar o ser do monte sem sentido,

Por o qu'em hum juizo humano estava!
Olhae que doce engano!

Tirar commum proveito de meu dano.

Assi qu'indo perdendo o sentimento
A parte racional, m'entristecia
Vê-la a hum appetite submettida.
Mas dentro n'alma o fim do pensamento,
Por tão sublime causa, me dizia
Qu'era razão ser a razão vencida.
Assi que quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava:
E em mansa paz estava

Cada hum com seu contrário em hum sogeito.
Oh grão concerto este!

Quem será que não julgue por celeste
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração

Que venha o appetite a ser razão?

Aqui senti d'Amor a mór fineza,
Como foi vêr sentir o insensivel,
E o vêr a mi de mi proprio perder-me;
E, emfim, senti negar-se a natureza;
Por onde cri que tudo era possivel
Aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que ja senti desfallecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,

Não sei quem m'escrevia

Dentro n'alma co'as letras da memoria

O mais deste processo,

Co'o claro gesto juntamente impresso,
Que foi a causa de tão longa historia.
Se bem a declarei,

Eu não a escrevo, d'alma a trasladei.

Canção, se quem te lêr

Não crêr dos olhos lindos o que dizes,
Por o que a si s'esconde;

Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento

Que a falta suppra a fé do entendimento.

CANÇÃO VIII

Manda-me Amor que cante o qu'a alma sente,
Caso que nunca em verso foi cantado,
Nem d'antes entre a gente acontecido.
Assi me paga em parte o meu cuidado;
Pois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte, e não serei da gente crido:
Mas he tamanho o gosto de louvar-me,
E de manifestar-me

Por captivo de gesto tão formoso,
Que todo o impedimento

Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso;

Que bem sei que o que canto

Ha d'achar menos credito qu'espanto.

Eu vivia do cego Amor isento,
Porém tão inclinado a viver preso,

Que me dava desgôsto a liberdade. Hum natural desejo tinha acceso D'algum ditoso e doce pensamento, Que m'illustrasse a insana mocidade. Tornava do anno ja a primeira idade; A revestida terra s'alegrava,

Quando o Amor me mostrava

De fios d'ouro as tranças desatadas
Ao doce vento estivo;

Os olhos rutilando lume vivo,

As rosas entre a neve semeadas;
O gesto grave e ledo,

Que juntos move em mi desejo e medo.

Hum não sei que suave respirando,
Causava hum desusado e novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Porque as garrulas aves, entretanto
Vozes desordenadas levantando,
Como eu em meu desejo s'encendião,
As fontes crystallinas não corrião,
Inflammadas na vista clara e pura;
Florecia a verdura,

Que, andando, co'os ditosos pés tocava;
As ramas se baixavão,

Ou d'inveja das hervas que pizavão,

Ou

porque tudo ant'elles se baixava:
O ar, o vento, o dia,

D'espiritos continuos influia.

E quando vi que dava entendimento

A cousas fóra delle, imaginei

Que milagres faria em mi que o tinha:

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